Zé dos Eclipses / Carlos Fortes
São ventos animais,
Rugidos, trovões,
Crescem dentro, dentro
Até nunca mais.
São feras nos quintais,
Corações felpudos,
Saltam dentro, dentro
Em acrobacias bestiais.
São anjos desleais,
Agentes secretos,
Do fundo, dentro, dentro
Sopram vendavais.
São ventos animais,
Doenças, traições,
Crescem dentro, dentro
Até nunca mais.
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Berlim, Berlim:
Morreu a nove.
Cenário:
Yorckstb…
Sucessão de viadutos de ferro
Enegrecidos pela ferrugem
Onde as velhas linhas para leste
Se equilibram, sobranceiras
Os carris retorcidos pelo matagal.
De quando em vez
O crepúsculo é rasgado pelo S-Bahn para Mariendorf
Fila de janelas iluminando prostitutas de couro e lingerie
Em carícias obscenas.
Hordas de guerreiros em látex vermelho
Silhuetas recortadas no lusco-fusco
Movimentam-se junto ao descampado.
Conan, o Bárbaro, montado no seu Camaro de 70
Cuspindo fogo estrepitosamente
Vem ver se está tudo bem com as suas pequenas.
Do imbiss do turco
Ouve-se a rádio anunciar que em Potsdamerplatz
O muro está a cair.
Que faço eu aqui
Com as mãos manchadas de sangue?
Berlim, Berlim...
Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses, Miguel Pedro
E se depois
O sangue ainda correr
Corre atrás dele
E se depois
O fogo te perseguir
Aquece-te nele
E se depois
O desejo persistir
Consome-te nele
E se depois
O sangue ainda correr
Corre atrás dele
E se depois
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Tianamen e o massacre de Pequim
Pablo Escobar e o Cartel de Medelin
Mais a queda do muro de Berlim
E a guerra contra Saddam Hussein
Os ataques com gás Sarin
Ou a Chechénia de Vladimir Putin
Putin
Não estava lá
Na Primavera não estava em Praga
No 25 de Abril estava em Braga
Demasiado entretido a crescer
Para dar conta do que estava a acontecer
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos para a Revolução
Fazer a festa
De cocktail na mão
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos aparecer na televisão
De cocktail na mão
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Avanço lesto
Por entre a multidão
Insana presa
De ecrãs de teelvisão
Alarmes soam
Em todo o quarteirão
Disparos gritos
Lançando a confusão
É guerra sem quartel
De empresas rivais
Na busca do controle
De mercados locais
Ou então... Ou então...
Encena-se um directo
Para a teelvisão
Sirenes passam
Em grande aceleração
Olhando para
Ecrãs de teelvisão
O caso surge
Com outra dimensão
Imagens com voz
Servindo de guião
É guerra sem quartel
De empresas rivais
Na busca do controle
De mercados locais
Ou então... Ou então...
Encena-se um directo
Para a teelvisão
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Os putos vêm só para dar um fix
Estendem-se pelo quarto a folhear comics
Esquecem gringas a marcar os livros
E morrem de volúpia num esgar feliz
Alguém me faz um bico
Não interessa se é noite ou dia
Os filmes em que vivem são de fantasia
Por entre trevas e mortos-vivos
É chinês o facho que os alumia
Alguém acende um Bic
Devaneiam-se incríveis planos
Num retorno extemporâneo aos verdes anos
Trincando velhas pizas ressequidas
Aos polícias e ladrões jogamos
Alguém se afunda a pique
Alguém me faz um bico
Alguém acende um Bic
Alguém se afunda a pique
Alguém se balança
E há mesmo alguém que dança
Ai, que eu quero vomitar
...Velocidade escaldante...
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Tu disseste “quero saborear o infinito”
Eu disse “a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis”
Tu disseste “sentir a aragem que balança os dependurados”
Eu disse “é o medo o que nos vem acariciar”
Tu disseste “eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpor o limiar da porta”
Eu disse “acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala”
Tu disseste “um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir”
Eu disse “...”
Eu disse “o que é que isso interessa?”
Tu disseste “...nada”
Tu disseste “agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca” Eu disse “eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede”
Tu disseste “e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?”
Eu disse “não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada”
Tu disseste “e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês”
Eu disse “o que é que isso interessa?”
Tu disseste “...nada”
Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses
Das garrafas há muito entornadas
Onde as cinzas dos mortos repousam
Crescem flores enegrecidas
Onde anjos malditos pernoitam
Das mulheres que eles amaram
Jamais se despregaram
Os negros véus sempre caídos
O pranto sempre vestido
Os demónios fervorosamente escondidos
Mãe! Mulher! Nascida dos ratos
Mãe! Mulher! Fermentada no armazém
Súcubo! Procuras-me enforcado
Súcubo! Visitas-me desmaiado
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Encontrei-a na Plaza Real
Pediu-me lume num ajuntamento
Transaccionavam-se objectos roubados
Quando surgiu a rusga da Guardia Civil
Puxou-me, fugimos por uma ruela da arcada
Puxou-me, fugimos por uma ruela da arcada
Encontrei-a na Plaza Real
Corremos as Ramblas entre copos e junkies
Divertimo-nos que nem doidos no Barrio Chino
O fim da noite foi na Gare Marítima
A ver o sol a nascer no Mediterrâneo
A ver o sol a nascer no Mediterrâneo
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Tenho os passos vigiados no labirinto das notícias. Das estatísticas não consigo escapar. Quimeras mercantis e mexericos mediáticos invadem-me a solidão. A realidade não existe. A fuga é para lado nenhum.
Tive uma ideia, tive uma ideia – vamos fugir!
Tive uma ideia, tive uma ideia – foge comigo!
A informação está em toda a parte. Mil olhos nos vigiam. Ninguém sabe quem dá as ordens. Mas elas cumprem-se. A teelvisão transmite-nos a realidade, transmite-nos as ordens. Eu cumpro. A única fuga é a loucura.
Tive uma ideia, tive uma ideia – vamos fugir!
Tive uma ideia, tive uma ideia – foge comigo!
Tenho um grilo falante um grilo falante
Um pateta desastrado desastrado
Um cavaleiro andante cavaleiro andante
Um pardal alucinado alucinado
Tenho uma top-model uma top-model
Um vingador implacável implacável
Tenho um prémio Nobel tenho um prémio Nobel
Uma amante insaciável insaciável
Tenho um serial killer tenho um serial killer
Tenho Deus disfarçado Deus disfarçado
Sou o maior dealer sou o maior dealer
Que se encontra no mercado
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
No calor da febre que me alaga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte.
Já desfila trémulo o cortejo do passado
Que me deixa quedo, surdo e mudo de pesar
Vejo o meu desgosto na beleza do teu rosto
Sinto o teu desprezo como um dardo envenenado.
Morro! Morro! No altar de ti.
Sopra forte o vento na fogueira que arde em mim.
Sinto a selva agreste nos batuques do meu peito.
No cruel caminho em que me lança o desespero
Sinto o gelo quente do inferno do meu fim.
No calor da febre que me alaga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte.
Morro! Morro! No altar de ti.
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço...
Morro! Morro! No altar de ti.
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Lisboa, Cais do Sodré:
Quando chega a noite
Com suas caras fugidias
Olhos dilatados pelo assombro
Deixamos que a cidade nos invada
Fantasma a embriagar-nos de luz e cor
Num sonho de mil e uma fantasias
O desejo cruzando os néons
Em projecções plásticas.
O dealer roubou-me
Levou-me a alma...
“Rai’s parta” o dealer!
E se depois, ao acordarmos
Acaso reparamos na escuridão que nos cerca
No leve restolhar que vem do lúgubre canto
Somos tomados por uma enorme letargia
Que nos deixa permeáveis ao frio da madrugada.
É então que as ratazanas, abandonando as trevas
Ficam estáticas, silenciosas
A verem-nos ir, equilibrando o passo
Por entre as sombras e o lixo.
O dealer roubou-me
Levou-me a alma...
“Rai’s parta” o dealer!
– Táxi! Casal Ventoso s.f.f.!...
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Pela estrada fora vinha um homem
Encoberto pelas sombras da noite. Alguém
Lhe perguntou o nome. – Sou uma miragem. Dizem que
Semeio o caos e a destruição como o vento
Semeia as papoilas. Meu nome
É Liberdade.
Vinha pela estrada
Fora a Liberdade encoberta pela noite
Das sombras. – Sabes quem eu sou? – Perguntou
Ao candeeiro. – És uma miragem
E pertences ao livro dos sublinhados provocadores
Que são os poetas. Almas sonhadoras.
– Anarquista Duval, prendo-te em nome da lei!
– E eu suprimo-te em nome da liberdade!
Sublinhados provocadores iam pela estrada
Fora carregando o livro
Das sombras. Da noite
Só restava o candeeiro
Encoberto...
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Dói-me a alma!
Na indecência da cidade
Fogaréus de mácula
Em cenários de fausto
Arrepiada nudez
De corpos contrafeitos
Dói-me a alma!
Na elipse do fim
Arcos-íris quebrados
Na demanda do vinho
Perdidos olhares
De insana comiseração
Dói-me a alma!
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Quero morder-te as mãos!
O teu sexo pelado
Faz de mim um escravo
Animal desvairado
Ansiando teu travo
Quero morder-te as mãos!
Quero-te a urina na boca
Dilacerar-te a valer
Até ficares com a voz rouca
Quero matar e morrer
Quero morder-te as mãos!
Gravado ao vivo em 7 de Fevereiro de 2003 por Nelson Carvalho no Auditório da RDP – Lisboa e misturado em Março de 2003 por Nelson Carvalho no Estúdio MB – Vila Nova de Gaia. Produção de Nelson Carvalho. Capa de Andreia Alves Mendes sobre fotografia de Pedro Matxira. Editado em Maio de 2003. Edição original Cobra.
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