Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Mão Morta
O médico mostra-me o filme É ESTE O SÍTIO
VEJA POR SI Tu sabes agora onde Deus mora
Cinzas o sonho de sete obras-primas
Três degraus e a esfinge mostra as suas garras
Considera-te feliz se o enfarte te apanhar de repente
Sem que um inválido mais atravesse a paisagem
Uma trovoada no cérebro chumbo nas artérias
O que tu não querias saber O TEMPO ESTÁ CONTADO
As árvores no caminho de regresso escandalosamente verdes
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Eu sou o anjo do desespero. Das minhas mãos distribuo a embriaguez, a estupefacção, o esquecimento, gozo e tormento dos corpos. Meu discurso é o silêncio, meu canto o grito. À sombra das minhas asas mora o terror. Minha esperança é o último suspiro. Minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto arromba o seu caixão. Eu sou aquele que será. Meu descolar é a sublevação, meu céu o abismo de amanhã.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
E ENTRE DOIS VEZES DOIS E B-A BA
Nós mijávamos a assobiar contra o muro da escola
Os mestres tapando a boca
VOCÊS NÃO TÊM VERGONHA Nós não tínhamos.
Quando a tarde caía subíamos à árvore
Onde de manhã cedo tinham colhido o morto. Vazia
Estava agora a sua árvore. Nós dizíamos: ESTE FOI-SE.
ONDE ESTÃO OS OUTROS? ENTRE RAMO E TERRA HÁ LUGAR.
Aquele que agarrava o gato sob as facas dos seus camaradas de brincadeira, era eu.
Eu atirava a sétima pedra ao ninho das andorinhas, e a sétima era a boa.
Quando a lua se enquadrava branca na janela do quarto, no meu sono
Eu era um caçador caçado pelos lobos, só com os lobos.
Ao adormecer ouvia gritar os cavalos nas cavalariças.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Um pai morto teria sido talvez
Um melhor pai. O preferível
É um pai nado-morto.
Não pára de crescer a erva sobre a fronteira.
A erva deve ser arrancada
De novo e de novo que cresce sobre a fronteira.
Gostaria que o meu pai tivesse sido um tubarão
Que tivesse despedaçado quarenta baleeiros
(E no seu sangue eu teria aprendido a nadar)
Minha mãe uma baleia azul meu nome Lautréamont
Morto em Paris
1871 desconhecido.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz
REVI A MALVADA PRIMA
Que partiu o meu brinquedo nas suas costas
MOSTRA e eu mostrei-lho e ela pegou nele
E eu ouvi-o estalar entre os seus dedos carnudos
Vi o seu sorriso inolvidável Hoje ainda
O estalido nos ouvidos à frente dos olhos o sorriso inolvidável
Falo mal daquilo que amo por prudência
Agora ela está sentada frente a mim e não sabe nada
O terror tornou-se frio Carne e gordura
Quotidiano Gritos de crianças A imundície da espécie
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Adolfo Luxúria Canibal
Uma rapariga sem braços com uma perna de pau
Frente a uma paisagem marítima, grávida.
Barata: não pode ir-te aos bolsos.
Cómoda: não se gruda ao teu andar.
SEM BRAÇOS É SEM PERIGO. Não pode
Correr atrás de ti: se tu partes
Tu partes.
Acenas-lhe talvez um pequeno adeus.
Apesar de tudo ela ainda tem olhos (dois).
Quatro mil raparigas sem braços abraçam-te
Quatro mil raparigas grávidas com pernas de pau
Seguem-te o rasto
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
ONTEM COMECEI
A matar-te meu amor
Agora amo
O teu cadáver
Quando eu estiver morto
O meu pó gritará por ti
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Sentar à máquina de escrever. Folhear
Um romance policial. No fim
Saber o que agora já sabes:
O secretário de cara lisa e barba dura
É o assassino do senador.
E o amor do jovem sargento da brigada criminal
Pela filha do almirante é correspondido.
Mas não saltarás de página.
De vez em quando, folheando uma, um olhar rápido
Sobre a folha em branco na máquina de escrever.
Isto ao menos vai-nos ser poupado. Melhor que nada.
No jornal estava escrito: algures, uma aldeia
Foi arrasada por um bombardeamento.
É lamentável, mas o que é que tens a ver com isso.
O sargento está a impedir o segundo assassinato
Apesar da filha do almirante lhe oferecer (pela primeira vez)
Os lábios, serviço é serviço.
Não sabes quantos morreram, o jornal desapareceu.
Ao lado, a tua mulher sonha com o seu primeiro amor.
Ontem tentou enforcar-se. Amanhã
Vai cortar os pulsos ou queseieuainda.
Ao menos tem um objectivo em vista
Que atingirá de uma maneira ou de outra.
E o coração é um vasto cemitério.
A história de Fátima no Neuen Deutschland
Estava tão mal escrita que te fez rir.
A tortura é mais fácil de aprender que a descrição da tortura.
O assassino caiu na armadilha
O sargento aperta a recompensa nos seus braços.
Agora podes dormir. Amanhã será um novo dia.
Porta interdita de Barba Azul Sonho interdito
As mulheres mortas no quarto usado pela dança
Nenhuma chuva lava o sangue da chave
Nenhum túmulo cobre a morte na tua retina
Nenhum anjo faz explodir com um bater de asas o teu quarto
As mulheres mortas devoram o teu sonho
O último aperto é o tribunal militar
No ano do eufórbio tu verás a sua cara
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Uma cama desce da teia e é colocada de pé. Duas mulheres com máscaras mortuárias trazem para o palco uma jovem rapariga e instalam-na de costas na cama. Vestir da noiva. Atam-na à cama com o cinto do vestido de noiva. Dois homens com máscaras mortuárias trazem o noivo e põem-no de cara voltada para a noiva. Ele faz o pino, caminha sobre as mãos, pavoneia-se frente a ela, etc.; ela ri silenciosamente. Ele rasga o vestido de noiva e toma lugar ao lado da noiva. Projecção: acasalamento. Com os farrapos do vestido de noiva as máscaras mortuárias homens atam as mãos e as máscaras mortuárias mulheres os pés da noiva às extremidades da cama. O resto serve de mordaça. Enquanto o homem, frente ao seu público feminino, faz o pino, caminha sobre as mãos, pavoneia-se, etc., o ventre da mulher incha até que rebenta. Projecção: parto. As máscaras mortuárias mulheres tiram uma criança do ventre da mulher, desfazem os seus nós e metem-lhe a criança nos braços. Durante esse tempo as máscaras mortuárias homens cobriram-no de tal modo de armas que o homem não pode mais mover-se senão a quatro patas. Projecção: massacre. A mulher desvia o seu rosto, desfaz a criança e atira os pedaços na direcção do homem. Da teia caem sobre o homem restos de membros entranhas.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Mão Morta
ONTEM PELA TARDE ENSOLARADA
Circulando através de Berlim a cidade morta
No regresso de um qualquer país estrangeiro
Senti pela primeira vez a necessidade
De ir desenterrar a minha mulher ao seu cemitério
Eu próprio deitei sobre ela duas pazadas cheias
E de ver o que dela ainda resta
Os ossos que nunca vi
De segurar o seu crânio na minha mão
E de imaginar o que era o seu rosto
Por detrás das máscaras que trazia
Através de Berlim a cidade morta e de outras cidades
No tempo em que estava vestido com a sua carne.
Não cedi a esta necessidade
Por medo da polícia e dos comentários dos meus amigos.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Um ano findou-se no barulho
Dos sinos e dos fogos-de-artifício. O jornal
Que será trazido dentro de uma hora
A ti na tua cidade a mim na minha cidade
Por uma velha mulher com as suas velhas pernas
Três filhos mortos na guerra mas nenhum jornal
O REICH O NEUES DEUTSCHLAND O RHEINISCHER MERKUR
Anunciará um melhor ano como de costume
E o que é negro no teu jornal tu sabe-lo
É branco no meu jornal nós sabemo-lo
Sem cessar a erva cresce na fronteira
E a erva deve ser arrancada
Sem cessar que cresce na fronteira
E os arames farpados devem ser plantados
Sem cessar pela bota cardada
EU SOU A BOTA QUE PLANTA OS ARAMES FARPADOS
Frente à minha janela sobre uma árvore do parque
Só como um bêbado na madrugada
Uma velha gralha bate ruidosamente as asas
Os varredores municipais ALL OUR YESTERDAYS
Começaram o seu trabalho
Muitas coisas voltam muitas outras não
O coração é um grande cemitério
NO PARQUE OS CHOUPOS SUSSURRAM
QUEM MORA NA MINHA CABEÇA
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Mão Morta
Entre cidade e cidade
Depois do muro o abismo
Vento nos ombros Estrangeira
A mão sobre a carne solitária
O anjo ouço-o ainda
Mas já não tem outro rosto senão
O teu que eu não conheço
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
No restaurante do hotel a inocência dos ricos
O olhar fleumático sobre a fome no mundo
O meu lugar é entre as cadeiras O meu sonho
Cortar a garganta engelhada da viúva na mesa vizinha
Com a faca do criado
Que lhe trincha o lombo de cordeiro Eu
Também não cortarei esta garganta
Durante a minha vida não farei nada de semelhante
Não sou Jesus Quem traz o gládio Eu
Sonho com gládios Sabendo que mais tempo do que eu
Durará a exploração em que tomo parte
Mais tempo do que eu a fome que me alimenta
O terror da violência é a sua cegueira
E os poetas sei-o mentem em demasia
Villon pôde ainda abrir as goelas
Contra a nobreza e o clero não tinha nem cadeira nem cama
E conhecia as prisões por dentro
Brecht enviou Ruth Berlau a Espanha e escreveu
Na Dinamarca AS ESPINGARDAS DA MÃE CARRAR
Gorki enquanto circulava por Moscovo puxado por dois cavalos
Odiava a pobreza PORQUE ELA HUMILHA Porquê
Apenas os pobres Maiakovski já se tinha
Condenado ao silêncio com o seu revólver
As mentiras dos poetas estão gastas
Pelos horrores do século Nos balcões do Banco Mundial
O sangue seco tem o cheiro a cosmético frio
O vagabundo a dormir frente ao ESSO SNACK & SHOP
Contradiz o lirismo da revolução
Eu passo de táxi Posso
Permitir-me Benn pode falar disso à vontade Ele não
Ganhou dinheiro com os seus poemas e teria
Esticado o pernil mesmo sem as dermatoses e as doenças venéreas
Na noite do hotel o meu palco
Não está mais aberto Os textos
Vêm sem rima a língua recusa o verso branco
Frente ao espelho quebram-se as máscaras Nenhum
Comediante me tira o texto Eu sou o drama
MÜLLER NÃO ÉS UM OBJECTO POÉTICO
ESCREVE PROSA A minha vergonha precisa do meu poema
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
CARIE DENTÁRIA EM PARIS
Alguma coisa em mim me corrói
Fumo demasiado
Bebo demasiado
Morro demasiado lentamente
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Adolfo Luxúria Canibal
A hiena gosta dos blindados imobilizados no deserto porque as suas tripulações estão mortas. Ela pode esperar. Ela espera até que mil e uma tempestades de areia tenham corroído o aço. Então chega a sua hora. A hiena é o animal heráldico das matemáticas. Ela sabe que não deve haver resto. Seu deus é o zero.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Teatro vazio. Em cena um actor
Que morre segundo as regras da sua arte
O punhal na nuca. O ardor retomado
Um último solo, para pedir os aplausos.
E nem uma mão. Num camarim vazio
Como o teatro, um fato esquecido.
A seda sussurra o que o actor grita.
A seda tinge-se de vermelho, o fato torna-se pesado
Com o sangue do actor que na morte se derrama.
Sob o esplendor dos lustres, que faz empalidecer a cena
O fato esquecido bebe e esvazia as veias
Do moribundo, que não se assemelha mais do que a ele mesmo
Perdida a alegria e o terror da metamorfose
Seu sangue uma mancha de cor sem retorno.
Heiner Müller, Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Esta noite atravessava uma floresta a sonhar.
Ela estava cheia de horror. Seguindo a cartilha
Os olhos vazios, que nenhum olhar compreende
Os bichos erguiam-se entre árvore e árvore
Esculpidos em pedra pelo gelo. Da linha
De abetos, ao meu encontro, através da neve
Vinha estalando, é isto um sonho ou são os meus olhos que a vêem,
Uma criança de armadura, coiraça e viseira
A lança no braço. Cuja ponta faísca
No negro dos abetos, que bebe o sol
O último vestígio do dia uma seta de ouro
Atrás da floresta do sonho, que me faz sinal de morrer
E num piscar de olho, entre choque e dor,
O meu rosto olhou-me: a criança era eu.
Gravado ao vivo em 6 de Janeiro de 1997 por José Fortes, com assistência de Fernando Rascão, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém – Lisboa e misturado e masterizado em Fevereiro de 1997 por José Fortes, com assistência de Luís Caldeira e de Fernando Paulo, nos Estúdios de Paço D’Arcos - Oeiras. Produção de Mão Morta e José Fortes. Capa de José Carlos Costa. Editado em Maio de 1997. Edição original NorteSul.
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