Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Dou por mim a suspirar por teus olhos verde-mar
Agarrado ao televisor como velho caçador
Só à espera de te ver em desfrutes de lazer
Nesse anúncio ao champô inspirado por Bashô
É mais fácil perceber
Como voa um avião
É mais fácil antever
A chegada de um tufão
Do que achar num manual instruções pra deslindar os novelos da paixão
Quando surges no ecrã pelo meio da manhã
Com teu jeito de sorrir tua pele a reluzir
Numa imagem estival que te deixa sem igual
Amortalha-me a mudez dum amor sem arnês
É mais fácil perceber
Como voa um avião
É mais fácil antever
A chegada de um tufão
Do que achar num manual instruções pra deslindar os novelos da paixão
E se afago a tua pele sinto o frio pixel
Numa vaga de prazer que me põe todo a tremer
É mais fácil perceber
Como voa um avião
É mais fácil antever
A chegada de um tufão
Do que achar num manual instruções pra deslindar os novelos da paixão
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Os helicópteros sobrevoam como insectos gigantes o aeroporto deserto. Corro a esconder-me no hangar abandonado quando dois carros da polícia passam a toda a velocidade pela via rápida, luzes e sirenes ligadas. Não me sai da retina a imagem dos corpos empilhados numa gigantesca tocha humana para impedir a propagação de doenças, nem o olhar impassível do pivot televisivo ao anunciar o recolher obrigatório permanente, depois de confirmados os efeitos mortais da vacina até então administrada para supostamente prevenir o contágio. Os alertas para essa possibilidade tinham sido sistematicamente denegridos como emanações da teoria da conspiração, mas afinal revelavam-se verdadeiros.
Pois, pois, conspiração!...
Ah, ah, conspiração!
Os helicópteros afastam-se agora em direcção ao centro da cidade. Aproveito para atravessar a pista do aeroporto e desaparecer no bosque que a circunda. Nas ruínas calcinadas do antigo bairro operário não consigo deixar de me interrogar se a mortandade foi mesmo deliberada, como muitos vaticinam, ou mero acidente provocado pela ânsia de lucro e a colocação no mercado de um produto mal testado. O certo é que a pandemia não passou de um colossal embuste mediático, destinado a predispor o público à vacinação.
Pois, pois, conspiração!...
Ah, ah, conspiração!
Com que então, conspiração!
Ah, ah, ah, conspiração!
Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz
Silenciosas imagens de tanques de guerra
Reflectem na penumbra das paredes estranhas geometrias de morte
Logo imitadas pelos amantes nos amplexos em que o amor encerra
A fúria do seu desnorte
Percorro
Solitário
Esquivas paisagens mentais
A que só o jogo sexual
Nas suas incertezas e possibilidades
Pode atribuir sentido
E quando as mãos que correm o corpo tenso
Na carne rija cravam os dedos abrem os tanques um fogo tão intenso
Que se quebram os segredos
Percorro
Solitário
Esquivas paisagens mentais
A que só o jogo sexual
Nas suas incertezas e possibilidades
Pode atribuir sentido
A que só o jogo pode dar sentido
Vão-se as lagartas dos tanques
A pisar o denso canavial deixando aos amantes os lumes estanques
Do repouso carnal
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
As cicatrizes avermelhadas do jovem piloto
Traçavam uma fina teia sobre o seu rosto
Deixando adivinhar um mapa para o labirinto
De mil acidentes amorosos sobrepostos
A biblioteca das nossas fixações
Constitui uma versão espectral e alternativa do nosso passado
A junção da axila da imberbe manequim
Com o rebordo do tejadilho do novo carro desportivo
Criava o necessário enquadramento erótico
Para o desabrochar da libido de grande parte do público
A biblioteca das nossas fixações
Constitui uma versão espectral e alternativa do nosso passado
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
A raiva homicida
Que vem na bebida
Dos tristes sem lar por que lutar
É prosa fiada
Em mesa dourada
É sonho sem ar pra respirar
Demência sem jeito
De um rumo desfeito
Num barco sem mar pra navegar
Mas barco sem uso
Não cai em desuso
Na tralha sem fim do meu jardim
Nas tardes de Inverno
As brumas da chuva
Revelam temores da razão
Erguendo os defuntos
Que moram secretos
Em covas ocultas pelo chão
No meio de escombros
Carcaças de carros
E restos de amores de Verão
Se o musgo não medra
Na estátua de pedra
À luz do luar junto ao altar
Emana da terra
Um grito de guerra
É tempo de dar sangue ao lugar
Sepulcros abertos
Sentidos despertos
A fé de matar a latejar
Impõe-me o destino
Pôr novo inquilino
Na tralha sem fim do meu jardim
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
A sofrida condolência
Que deveras me oprime
Pelas vítimas de brutais acidentes
Não me impede de sentir
Um arremedo de volúpia cerebral
Ante a vil visão frontal
Dos ferimentos e fracturas indecentes
Que expõem à multidão
Como um vampiro que jaz em paz no caixão
Espera a hora terrível do serão
Como um vampiro que jaz na paz do caixão
Espera a hora terrível do serão
Sou tomado por soturna danação
Que me deixa a vaguear
Por estradas e caminhos tormentosos
Delirando num enorme frenesim
Como um vampiro que jaz em paz no caixão
Espera a hora fausta da libertação
Como um vampiro que jaz na paz do caixão
Espera a hora fausta da libertação
Carrego o peso dos mistérios ancestrais
Carrego o peso dos mistérios ancestrais
Carrego o peso dos mistérios ancestrais
Como um vampiro na paz da escuridão
Espera a hora sagrada da refeição
Como um vampiro que jaz na paz do caixão
Espera a hora fausta da libertação
Como um vampiro na escuridão
Espera a hora terrível do serão
Como um vampiro que jaz na escuridão
Espera a hora fausta da libertação
Como um vampiro que jaz em paz no caixão
Espera a hora da refeição
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Clamam sem fim no bulevar
Com essa voz vinda do além
Carrega a dor dos imortais
Que vogam em desatino
Perdido o sabor da rebelião
O prazer malsão dos punhais
Um fio de voz a relembrar
Que mora em nós a frigidez
Da carne em pó nas catedrais
Mensagem circular
De um devir por corromper
A pôr redil nos animais
Nesse corpo carne modelada
Corpo sexo feira de atrocidades
Que encerra na tortura apuradas depravações
Argumento conceptual
Sequioso de perversões
Uau!
Apocalipse, uau!
Divina Comédia, uau!
Refeição Nua, uau!
Nosso corpo carne modelada
Corpo sexo feira de atrocidades
Que encerra na tortura apuradas depravações
Argumento conceptual
Sequioso de perversões
Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz
A luz dos faróis
Iluminava a auto-estrada
Traçando sucessivas diagonais
Numa geometria perfeita
Com as luzentes linhas laterais
Quando vi os estranhos grafitos
Representando corpos desnudos
E esgares faciais
Lembravam
Uma colecção de fotografias
Pornográficas
Encenadas
Como memórias seráficas
De um pesadelo
Com figuras iconográficas
Vedetas televisivas
Políticos conhecidos
Em posições sáficas
O córtex cerebral
Processa a informação
E regista a reacção
Da medula espinal
Reconheci
O seio esquerdo de R.P.
A que a velocidade
Imprimia convulsões orgásticas
De desconhecida intensidade
E as pernas roliças de A.M.
Em pujantes tesouradas
De feroz carnalidade
Lembravam
Uma colecção de fotografias
Pornográficas
Encenadas
Como memórias seráficas
De um pesadelo
Com figuras iconográficas
Vedetas televisivas
Políticos conhecidos
Em posições sáficas
O córtex cerebral
Processa a informação
E regista a reacção
Da medula espinal
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Conheci-o numa tarde de chuva
Quando as resinas coloridas que lhe simulavam danos cerebrais
Lhe escorriam pela cara e lhe empapavam o colarinho.
Vinha inaugurar uma exposição de quadros abstractos
Que eram uma sucessão de volumes vagamente parecidos com dunas
Dando a ilusão de um corpo humano em movimento.
– A morte não é mais do que uma predisposição para a horizontalidade!
Disse-lhe à queima-roupa.
Para fazer de morto
Basta só no chão
Esticar o corpo
Estender o corpo
(Salvação meu irmão)
Mais tarde, enquanto fazíamos um passeio nocturno
Por entre as torres de betão vazias e as massas de pneus
Amontoados no descampado debaixo da via rápida
Contou-me que a mulher o trocara pelo melhor amigo.
– O seu corpo tem a forma das minhas mãos!
Disse-me com irreprimível entusiasmo.
– No fundo, é como se tivesse sido desfigurado
Num repentino acidente de automóvel!…
Para fazer de morto
Basta só no chão
Esticar o corpo
Estender o corpo
(Salvação meu irmão)
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Nas filas de veículos
Ao longo da auto-estrada
As mãos da minha amada
Afagam-me os testículos
Oh deuses da loucura
Valei-me na tontura
Sentindo o pára-arranca
Com que avança o cortejo
Cresce em mim um desejo
Que nem a morte estanca
Nestes sonhos de fusão
Metal – carne, metalcarne
Mora uma nova emoção
Metal – carne, metalcarne
Afundado no assento
Atiro-me para a frente
Provocando o acidente
Num orgasmo violento
Nestes sonhos de fusão
Metal – carne, metalcarne
Mora uma nova emoção
Metal – carne, metalcarne
Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz
O ar morno e sufocante
Penetrava pela janela
Toda a estância balnear
Esmagada pela quentura
Parecia estar deserta
Concentrados à beira mar
Muitos corpos escaldados
Estendidos uns sobre os outros
Como nacos de vianda
Nos balcões dos supermercados
Mais um dia sem demanda
Neste enfado
Mojito champanhe
Margarita para acordar
Martini Daiquiri
Caipirinha para embalar
Pina Colada
Bloody Mary para o deitar
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Esta é a história de Tiago Capitão que foi maoísta no tempo da revolução e negreiro quando passou a confusão. O seu poder subterrâneo edificou-o ao acaso das férias pelo Mediterrâneo, de Gibraltar a Portofino, onde encantava com seu ar ladino os turistas mais ávidos de agitação. Quando soprava o vento Suão organizava escabrosos Carnavais, onde virgens de enigmáticas origens – manancial de carne fresca que desembarcava em misteriosos barcos de pesca – eram sacrificadas ao cruel manejo dos bacantes inflamados de desejo. E nas noites de lua cheia comandava pretendidas epopeias por vivendas que sabia desocupadas e que eram então arrombadas, profanadas e mesmo incendiadas, numa volúpia de destruição que lhe ia firmando a reputação. Criou assim uma horda de veraneantes unidos por um mesmo brado viciante:
“Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó Capitão!”
Mas tudo tem um fim.
E o fim chegou.
Apesar de Tiago Capitão, incutido o gosto pela devassidão e assegurado um timoneiro para a sua substituição, ter o cuidado de sempre mudar de localidade e assim despistar a sua identidade, o seu nome acabou nos registos da polícia, que só esperava uma ocorrência propícia para lhe deitar a mão. E veio o fatídico serão em que Tiago Capitão foi encurralado como um cão danado e, antes mesmo de poder esboçar um gesto de protesto, condenado por uma saraivada de balas a uma morte sem galas. Mas o seu exemplo manteve-se presente e não deixou indiferente quem com ele aprendeu a amar o Verão com a lascívia da transgressão. E ainda hoje, por noites de lua cheia, em lugarejos perdidos da costa mediterrânica, de Gibraltar a Portofino, se podem ouvir os ecos malditos da canção de Tiago Capitão:
“Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó Capitão!”
(oiçam a canção)
(a canção do capitão)
Gravado em Outubro de 2009 e Fevereiro de 2010 por Mário Pereira, André Holanda e Nuno Couto no Estúdio de Mário Pereira – Porto, por Miguel Pedro no My Own Studio – Braga e por António Rafael no Miritz Studio - Braga e misturado em Fevereiro e Março de 2010 por Mário Pereira no Estúdio de Mário Pereira – Porto. Masterizado em Março de 2010 por Andy VanDette no Sterling Sound – Nova Iorque. Produção de Miguel Pedro, António Rafael e Vasco Vaz. Capa de Andreia Alves Mendes sobre fotografia de Adolfo Luxúria Canibal. Editado em Abril de 2010. Edição original Universal.
2021 - . Mão Morta . Todos os direitos reservados
2021 - . Webdesign by publiSITIO . design e comunicação . Todos os direitos reservados