Adolfo Luxúria Canibal / Adolfo Luxúria Canibal, Zé dos Eclipses, Miguel Pedro, Pedro Maia
Sangue no asfalto
Atravesso a azul noite da solidão
Envolto em ténues irradiações de pura emoção
Corpos desprendem gemidos mutilados
Em excêntricas posições espalhados
Pedaços de chapa vidros escacados
E um mundo de sensações medo horror
Fundem-se num sensual cheiro a morte e dor
Sangue no asfalto
Percorro ansioso os destroços no alcatrão
Abrasado em palpitações de pura paixão
Segurando um crânio já estilhaçado
No escuro de dois chorões agachado
Nutre-se de miolos o deus desnudado
Solto algumas imprecações contra o ladrão
E procuro outra azul noite – solidão
Sangue no asfalto
Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses
Das garrafas há muito entornadas
Onde as cinzas dos mortos repousam
Crescem flores enegrecidas
Onde anjos malditos pernoitam
Das mulheres que eles amaram
Jamais se despregaram
Os negros véus sempre caídos
O pranto sempre vestido
Os demónios fervorosamente escondidos
Mãe! Mulher! Nascida dos ratos
Mãe! Mulher! Fermentada no armazém
Súcubo! Procuras-me enforcado
Súcubo! Visitas-me desmaiado
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Abriu a primeira porta que viu à mão e entrou
Os seus olhos fotografaram instantaneamente o quarto
Viu-a pelo espelho, imóvel, no limiar da porta
Ela adiantou-se; ele tirou a pistola da algibeira
Estremeceu na noite fria envolta em nevoeiro
Havia vagões e pilhas de carvão por todos os lados
Dentro da casa não havia sinal de vida
Enfiado pela chaminé estava um corpo de mulher
Quem matou a chabala?
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Oub´lá que é que estás a fazer?
Quero é que tu te bás foder!
Qual é a tua identidade?
Perdi-a aí pela cidade!
Para que é que estás todo à manière?
Ando a ber se faço uma mulher!
Rouba! Rouba! Rouba! Rouba!
Os que te querem bem!
Rouba! Rouba! Rouba! Rouba!
Os que te querem mal!
Oub' lá que é que estás a fazer?
Quero é que tu te bás foder!
Qual é a tua identidade?
Perdi-a aí pela cidade!
Que fazes c' a carteira do Tó?
Quero guita para ir buscar pó!
Rouba! Rouba! Rouba! Rouba!
Os que te querem bem!
Rouba! Rouba! Rouba! Rouba!
Os que te querem mal!
Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses, Miguel Pedro
E se depois
O sangue ainda correr
Corre atrás dele
E se depois
O fogo te perseguir
Aquece-te nele
E se depois
O desejo persistir
Consome-te nele
E se depois
O sangue ainda correr
Corre atrás dele
E se depois
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro, Zé dos Eclipses
O bófia empurrava-me e dizia para desandar. Eu não podia compreender porquê. Quis- lhe perguntar. O bófia sacou do cassetete e deu-me com ele uma, duas, três vezes nos costados. Senti um choque eléctrico percorrer-me o corpo. E uma humilhação que não podia ficar impune. Não percebia porque é que ele me batia. Quis-lhe perguntar. Mas o gajo continuou a dar-me cacetadas. E já outros bófias se aproximavam de cassetete na mão. Não ia ficar para ali, especado, feito bombo da festa. Uma raiva surda trepava- me à cabeça. Ah que raiva! Quando dou conta mandava-lhe uma joelhada aos tomates. Senti-os a espalmar de encontro ao joelho. Já os outros bófias descarregavam sobre mim os seus cassetetes virados ao contrário. Senti uma dor de vertigem quando um me acertou na cara. Percebi que a carne se rasgava e que um esguicho de sangue me inundava os olhos. Já me acertavam por todos os lados. Mas não interessava. Já nada interessava.
Sede de sangue! Sede de sangue!
Já nada interessava. A não ser aquele bófia agarrado aos tomates. Num último esforço disparo-lhe um pontapé à cara. Assim, de baixo para cima – pás! Senti a biqueira da bota entrar-lhe pelas fuças dentro. Os ossos a quebrar. Os dentes a saltar numa baba de cuspo e sangue. Os outros bófias continuavam a descarregar sobre mim os seus cassetetes virados ao contrário. Mas eu já nada via. Só sangue. Dores. Senti-me dobrar. Cair. Aaaaaaaaahhh!...
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!
Adolfo Luxúria Canibal / Zé dos Eclipses
Vivia na temperatura tépida dos lençóis
Aquele que dava pelo estranho nome
De Amor. Às vezes, soltava-se
E percorria pela mão
Dos adolescentes ruas desertas, sombras
Escuras e conspiradoras. – Soltou-se
O Amor – alguém gritava.
E vinha o vermelho e invadia
O vermelho
E assanhavam-se os gatos conscientes
Da invasão da sua noite
Solitária. Depois apagava-se
A última luz da última janela e desaparecia
O Amor na tepidez dos lençóis. Ficava
A lua, ficava o luar
Azul a reflectir perigosamente
Nas lâminas das facas ensanguentadas
Dos adolescentes...
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Abandonada à beira rio
Pela calada da noite
A cidade apodrece.
Remexendo no visco
Como ratazanas dos esgotos
Ansiando alimento
Percorrem-se as vielas.
O amor, sublimada filigrana
Submergido pelo lodo
Torna-se disforme
Destroço asfixiado em desperdícios...
E o sol fotografa-nos
No vómito de uma dor imensa
Derradeira!
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Em volta
O triturar exausto de máquinas infernais
Tráfego tráfego & punhais
Fábricas prédios em construção
Néons buzinas tudo em combustão!
E a terna poesia
De uma sucata sombria
Dejectos & detritos
Em abraços de ferrugem
Gritos!
Sitiados!
Ao longe
Um campo de cruzes retorcidas
Relampejando do sol-pôr brumas homicidas...
Tráfego tráfego & punhais...
& punhais...
Sitiados!
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Seduzido pelo rodopio
Embriagado de vertigem
Os néons ferindo como gritos
Deixo-me possuir pelo frémito da multidão
Num desejo de girar sem parar
Até cair até cair
Tudo são sombras difusas
Incertezas especulações sem sentido
Uma mulher disforme e cara esborratada
Insiste para que lhe apalpe os seios flácidos
Quero mais é o rodopio
A lascívia sem fim deste carrossel atroz
Adolfo Luxúria Canibal / Zé dos Eclipses
Maria
No regresso a casa
Vi dois elfos a brincar
Oh Maria
E dois outros a sangrar...
As trevas estão por aí, escondidas
À espera que eu apague a luz
Para se lançarem sobre mim!
Maria
No regresso a casa
Vi dois olhos a brilhar
Oh Maria
E dois outros a cegar...
As trevas estão por aí, escondidas
À espera que eu apague a luz
Para se lançarem sobre mim!
Maria
Tenho medo, medo
Do que pode acontecer
Oh Maria
Do que está para ocorrer!...
As trevas estão por aí, escondidas
À espera que eu apague a luz
Para se lançarem sobre mim!
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Pela estrada fora vinha um homem
Encoberto pelas sombras da noite. Alguém
Lhe perguntou o nome. – Sou uma miragem. Dizem que
Semeio o caos e a destruição como o vento
Semeia as papoilas. Meu nome
É Liberdade.
Vinha pela estrada
Fora a Liberdade encoberta pela noite
Das sombras. – Sabes quem eu sou? – Perguntou
Ao candeeiro. – És uma miragem
E pertences ao livro dos sublinhados provocadores
Que são os poetas. Almas sonhadoras.
– Anarquista Duval, prendo-te em nome da lei!
– E eu suprimo-te em nome da liberdade!
Sublinhados provocadores iam pela estrada
Fora carregando o livro
Das sombras. Da noite
Só restava o candeeiro
Encoberto...
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Tianamen e o massacre de Pequim
Pablo Escobar e o Cartel de Medelin
Mais a queda do muro de Berlim
E a guerra contra Saddam Hussein
Os ataques com gás Sarin
Ou a Chechénia de Vladimir Putin
Putin
Não estava lá
Na Primavera não estava em Praga
No 25 de Abril estava em Braga
Demasiado entretido a crescer
Para dar conta do que estava a acontecer
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos para a Revolução
Fazer a festa
De cocktail na mão
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos aparecer na televisão
De cocktail na mão
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Quero morder-te as mãos!
O teu sexo pelado
Faz de mim um escravo
Animal desvairado
Ansiando teu travo
Quero morder-te as mãos!
Quero-te a urina na boca
Dilacerar-te a valer
Até ficares com a voz rouca
Quero matar e morrer
Quero morder-te as mãos!
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Cá vou eu no meu Trabi
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar
Charro aqui charro ali
Mais um vodka para atestar
Corro Peste corro Buda
Sempre a rock & rollar
As noites de Budapeste
São noites de rock & roll
Pelas caves da cidade
São só bandas a tocar
Pondo tudo em alvoroço
Tudo a rock & rollar
Mulheres lindas de morrer
Mini-saias a matar
Não tem fim o reboliço
Tudo a rock & rollar
As caves de Budapeste
São caves de rock & roll
Cá vou eu no meu Trabi
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar
Charro aqui charro ali
Mais um vodka para atestar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar
As noites de Budapeste
São noites de rock & roll
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Os putos vêm só para dar um fix
Estendem-se pelo quarto a folhear comics
Esquecem gringas a marcar os livros
E morrem de volúpia num esgar feliz
Alguém me faz um bico
Não interessa se é noite ou dia
Os filmes em que vivem são de fantasia
Por entre trevas e mortos-vivos
É chinês o facho que os alumia
Alguém acende um Bic
Devaneiam-se incríveis planos
Num retorno extemporâneo aos verdes anos
Trincando velhas pizas ressequidas
Aos polícias e ladrões jogamos
Alguém se afunda a pique
Alguém me faz um bico
Alguém acende um Bic
Alguém se afunda a pique
Alguém se balança
E há mesmo alguém que dança
Ai, que eu quero vomitar
...Velocidade escaldante...
Gravado em Agosto de 1995 por José Fortes na Casa do Rolão – Braga e misturado em Setembro de 1995 por José Fortes na União dos Amigos de Palhais - Cadaval. Técnica de midi de Bula. Produção de José Fortes e Mão Morta. Desenho de contracapa de Jorge Nesbitt. Capa de Ricardo Mealha sobre pintura de Miguel Branco. Editado em Outubro de 1995. Edição original BMG-Ariola.
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