Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses
Das garrafas há muito entornadas
Onde as cinzas dos mortos repousam
Crescem flores enegrecidas
Onde anjos malditos pernoitam
Das mulheres que eles amaram
Jamais se despregaram
Os negros véus sempre caídos
O pranto sempre vestido
Os demónios fervorosamente escondidos
Mãe! Mulher! Nascida dos ratos
Mãe! Mulher! Fermentada no armazém
Súcubo! Procuras-me enforcado
Súcubo! Visitas-me desmaiado
Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses, Miguel Pedro
E se depois
O sangue ainda correr
Corre atrás dele
E se depois
O fogo te perseguir
Aquece-te nele
E se depois
O desejo persistir
Consome-te nele
E se depois
O sangue ainda correr
Corre atrás dele
E se depois
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Tianamen e o massacre de Pequim
Pablo Escobar e o Cartel de Medelin
Mais a queda do muro de Berlim
E a guerra contra Saddam Hussein
Os ataques com gás Sarin
Ou a Chechénia de Vladimir Putin
Putin
Não estava lá
Na Primavera não estava em Praga
No 25 de Abril estava em Braga
Demasiado entretido a crescer
Para dar conta do que estava a acontecer
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos para a Revolução
Fazer a festa
De cocktail na mão
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos aparecer na televisão
De cocktail na mão
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Cá vou eu no meu Trabi
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar
Charro aqui charro ali
Mais um vodka para atestar
Corro Peste corro Buda
Sempre a rock & rollar
As noites de Budapeste
São noites de rock & roll
Pelas caves da cidade
São só bandas a tocar
Pondo tudo em alvoroço
Tudo a rock & rollar
Mulheres lindas de morrer
Mini-saias a matar
Não tem fim o reboliço
Tudo a rock & rollar
As caves de Budapeste
São caves de rock & roll
Cá vou eu no meu Trabi
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar
Charro aqui charro ali
Mais um vodka para atestar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar
As noites de Budapeste
São noites de rock & roll
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Os putos vêm só para dar um fix
Estendem-se pelo quarto a folhear comics
Esquecem gringas a marcar os livros
E morrem de volúpia num esgar feliz
Alguém me faz um bico
Não interessa se é noite ou dia
Os filmes em que vivem são de fantasia
Por entre trevas e mortos-vivos
É chinês o facho que os alumia
Alguém acende um Bic
Devaneiam-se incríveis planos
Num retorno extemporâneo aos verdes anos
Trincando velhas pizas ressequidas
Aos polícias e ladrões jogamos
Alguém se afunda a pique
Alguém me faz um bico
Alguém acende um Bic
Alguém se afunda a pique
Alguém se balança
E há mesmo alguém que dança
Ai, que eu quero vomitar
...Velocidade escaldante...
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro, Zé dos Eclipses
O bófia empurrava-me e dizia para desandar. Eu não podia compreender porquê. Quis-lhe perguntar. O bófia sacou do cassetete e deu-me com ele uma, duas, três vezes nos costados. Senti um choque eléctrico percorrer-me o corpo. E uma humilhação que não podia ficar impune. Não percebia porque é que ele me batia. Quis-lhe perguntar. Mas o gajo continuou a dar-me cacetadas. E já outros bófias se aproximavam de cassetete na mão. Não ia ficar para ali, especado, feito bombo da festa. Uma raiva surda trepava- me à cabeça. Ah que raiva! Quando dou conta mandava-lhe uma joelhada aos tomates. Senti-os a espalmar de encontro ao joelho. Já os outros bófias descarregavam sobre mim os seus cassetetes virados ao contrário. Senti uma dor de vertigem quando um me acertou na cara. Percebi que a carne se rasgava e que um esguicho de sangue me inundava os olhos. Já me acertavam por todos os lados. Mas não interessava. Já nada interessava.
Sede de sangue! Sede de sangue!
Já nada interessava. A não ser aquele bófia agarrado aos tomates. Num último esforço disparo-lhe um pontapé à cara. Assim, de baixo para cima – pás! Senti a biqueira da bota entrar-lhe pelas fuças dentro. Os ossos a quebrar. Os dentes a saltar numa baba de cuspo e sangue. Os outros bófias continuavam a descarregar sobre mim os seus cassetetes virados ao contrário. Mas eu já nada via. Só sangue. Dores. Senti-me dobrar. Cair. Aaaaaaaaahhh!...
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho
Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma
Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado
Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste
Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Avanço lesto
Por entre a multidão
Insana presa
De ecrãs de teelvisão
Alarmes soam
Em todo o quarteirão
Disparos gritos
Lançando a confusão
É guerra sem quartel
De empresas rivais
Na busca do controle
De mercados locais
Ou então... Ou então...
Encena-se um directo
Para a teelvisão
Sirenes passam
Em grande aceleração
Olhando para
Ecrãs de teelvisão
O caso surge
Com outra dimensão
Imagens com voz
Servindo de guião
É guerra sem quartel
De empresas rivais
Na busca do controle
De mercados locais
Ou então... Ou então...
Encena-se um directo
Para a teelvisão
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
No calor da febre que me alaga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte.
Já desfila trémulo o cortejo do passado
Que me deixa quedo, surdo e mudo de pesar
Vejo o meu desgosto na beleza do teu rosto
Sinto o teu desprezo como um dardo envenenado.
Morro! Morro! No altar de ti.
Sopra forte o vento na fogueira que arde em mim.
Sinto a selva agreste nos batuques do meu peito.
No cruel caminho em que me lança o desespero
Sinto o gelo quente do inferno do meu fim.
No calor da febre que me alaga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte.
Morro! Morro! No altar de ti.
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço...
Morro! Morro! No altar de ti.
Adolfo Luxúria Canibal / Sapo
as paredes brancas da morte
frio
vácuo
arrepio
gelo
as paredes brancas da morte
calafrio
metal
rocio
luz
vazio
húmido
luzidio
morgue
morgue
morgue
vácuo frio
gelo luzidio
metal arrepio
húmido calafrio
morgue
morgue
morgue
Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.
As crostas e pústulas da lepra escamaram-me a pele, coberta de pus amarelo. Não conheço a água dos rios nem o orvalho das nuvens. Na minha nuca, como num fumeiro, cresce um enorme cogumelo, de pedúnculos umbelíferos. Sentado num traste informe, não mexi os membros desde há quatro séculos. Os meus pés tomaram raiz no solo e compõem, até ao ventre, uma espécie de vivaz vegetação, cheia de ignóbeis parasitas, que não deriva ainda da planta mas que já não é carne. No entanto, o meu coração bate. Mas como poderia ele bater se a podridão e as exalações do meu cadáver (não ouso dizer corpo) não o nutrissem abundantemente?
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.
Na axila esquerda, uma família de sapos fez morada e quando um se mexe faz-me cócegas. Tomai cuidado, não vá fugir algum e que vá roçar com a boca no interior da vossa orelha!... Era capaz de depois vos entrar no cérebro! Na axila direita há um camaleão que lhes dá caça incessante para não morrer de fome: todos têm que viver! Mas quando uma das partes frustra completamente as manhas da outra, não encontram nada melhor para fazer do que não se incomodarem e chupam a delicada gordura que me cobre as costas. Já estou habituado.
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.
Uma víbora malvada devorou-me o pénis e tomou o seu lugar. Tornou-me eunuco, aquela infame! Oh, se eu tivesse podido defender-me com os meus braços paralisados… Mas creio antes que eles se transformaram em cavacos! Seja como for, importa constatar que o sangue já lá não vai passear a sua vermelhidão. Dois pequenos ouriços, que pararam de crescer, deitaram a um cão, que não recusou, o interior dos meus testículos: a epiderme cuidadosamente lavada, meteram-se dentro dela. O ânus foi interceptado por um caranguejo: animado pela minha inércia, guarda a entrada com as suas pinças e faz-me doer muito. Duas medusas atravessaram os mares imediatamente atraídas por uma esperança que não foi iludida. Olharam com atenção as duas partes carnudas que formam o traseiro humano e, fixando-se no seu contorno convexo, esmagaram-nas tanto por uma pressão constante que os dois pedaços de carne desapareceram, ficando lá dois monstros saídos do reino da viscosidade, iguais na cor, na forma e na ferocidade.
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.
Não faleis da minha coluna vertebral, porque é uma espada. Sim… Sim, não estava a reparar!... A vossa pergunta tem toda a razão de ser! Desejais saber, não é verdade, como é que ela se encontra verticalmente implantada nos meus rins? Nem mesmo eu me lembro muito claramente. No entanto, se me decidir a tomar por recordação o que talvez não passe de um sonho, sabei que o Homem, quando soube que eu tinha feito o voto de viver com a doença e a imobilidade até vencer o Criador, veio por trás de mim, na ponta dos pés… Mas não tão levemente que eu o não ouvisse! Não percebi mais nada durante um instante, que não foi longo. Aquele punhal afiado enterrou-se até ao cabo entre as duas espáduas do touro de morte e a sua ossatura estremeceu como um tremor de terra. A lâmina adere tão fortemente ao corpo que ninguém até agora a conseguiu extrair. Os atletas, os mecânicos, os filósofos, os médicos, tentaram, cada um por si, os meios mais diversos. Não sabiam que o mal feito pelo Homem não pode mais ser desfeito!
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Esta é a história de Tiago Capitão que foi maoísta no tempo da revolução e negreiro quando passou a confusão. O seu poder subterrâneo edificou-o ao acaso das férias pelo Mediterrâneo, de Gibraltar a Portofino, onde encantava com seu ar ladino os turistas mais ávidos de agitação. Quando soprava o vento Suão organizava escabrosos Carnavais, onde virgens de enigmáticas origens – manancial de carne fresca que desembarcava em misteriosos barcos de pesca – eram sacrificadas ao cruel manejo dos bacantes inflamados de desejo. E nas noites de lua cheia comandava pretendidas epopeias por vivendas que sabia desocupadas e que eram então arrombadas, profanadas e mesmo incendiadas, numa volúpia de destruição que lhe ia firmando a reputação. Criou assim uma horda de veraneantes unidos por um mesmo brado viciante:
“Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó Capitão!”
Mas tudo tem um fim.
E o fim chegou.
Apesar de Tiago Capitão, incutido o gosto pela devassidão e assegurado um timoneiro para a sua substituição, ter o cuidado de sempre mudar de localidade e assim despistar a sua identidade, o seu nome acabou nos registos da polícia, que só esperava uma ocorrência propícia para lhe deitar a mão. E veio o fatídico serão em que Tiago Capitão foi encurralado como um cão danado e, antes mesmo de poder esboçar um gesto de protesto, condenado por uma saraivada de balas a uma morte sem galas. Mas o seu exemplo manteve-se presente e não deixou indiferente quem com ele aprendeu a amar o Verão com a lascívia da transgressão. E ainda hoje, por noites de lua cheia, em lugarejos perdidos da costa mediterrânica, de Gibraltar a Portofino, se podem ouvir os ecos malditos da canção de Tiago Capitão:
“Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó Capitão!”
(oiçam a canção)
(a canção do capitão)
Compilação com temas retirados de Mão Morta (K7) de 1987, de Mão Morta de 1988, de O.D., Rainha do Rock & Crawl de 1991, de Mutantes S.21 de 1992, de Vénus Em Chamas de 1994, de Mão Morta Revisitada de 1995, de Há Já Muito Tempo Que Nesta Latrina o Ar Se Tornou Irrespirável de 1998, de Primavera de Destroços de 2001, de Nus de 2004, de Maldoror de 2008 e de Pesadelo em Peluche de 2010. Capa Levoir. Editado em Dezembro de 2011. Edição original Levoir.
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