Mão
Morta

pelo meu relógio são horas de matar

Pelo meu relógio são horas de matar

Irmão da Solidão

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Eu sou irmão da solidão.

Passou o tempo da guerra
o tempo da afirmação.
Agora, que importa
se os outros vivem felizes
ou se desesperam.
Eu sou irmão da solidão
e com ela mantenho incestuosa relação.

Amo toda a gente
ternamente
(pelo menos neste momento)
mas mesmo que partilhe esse amor
mesmo que fale e beije
e te deseje
sinto-me irmão da solidão.

Deixo-me vogar lentamente...
a mente
que se perca nos labirintos do pensamento
e da razão.
O corpo apenas pede divertimento sensorial
e esse, posso disfarçá-lo na aurora boreal
contida num qualquer copo de cerveja.

Eu sou irmão da solidão
que interessa a tua opinião.

Hipótese do Suicídio

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Como posso eu dizer que te amo se não encontro amor em mim
Apenas mágoa, de tanto calar a raiva e o nojo da minha condição

Enxovalhado no trabalho, maltratado na doença,
Humilhado no salário, aviltado na dignidade,
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar

Nem sei o que me prende aqui, sufocado em tamanha opressão
A não ser a tola esperança de que melhores dias virão

Enxovalhado no trabalho, maltratado na doença,
Humilhado no salário, aviltado na dignidade,
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar

A hipótese do suicídio liberta-nos para a vida
A hipótese do suicídio liberta-nos para a vida

Porque se viver é arrastar este morrer prefiro então antes a morte
É que assim resta pouco para gostar de mim e ainda menos para gostar de ti

Nuvens Bárbaras

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Ouço ranger as rodas dentadas do devir a esmagar os tendões do tempo, derrubando as árvores, estilhaçando as pedras, aproximando as ruínas, as tempestades tumultuosas que varrem as trevas trazendo o ocaso de um mundo em extinção, engalfinhando as águas, as chuvas dos céus, deixando as nuvens cair como granizo em flor, as cidades devastadas pela veloz língua do vento, o fogo crematório saltando, enfunado, cheio de dedos e marés, numa velha imagem desenhada pela mão venenosa de um pesadelo vinda do sono em direcção ao princípio de todas as coisas, os músculos vencidos, o corpo impotente, sem forças, carcomido pela doença, vergado pela dor, o eco batendo à procura de uma resposta que só a húmida terra tumular pode fornecer.

Com o presente envenenado pelas nuvens da barbárie
O futuro já não é uma fonte de esperança
Só nos resta a indigência
Ou morrer de morte certa como heróis de pechisbeque
Neste grande fogaréu de aparato e opulência
Em que farra o capital

O futuro já não é o que era, esgotada a reserva de alento que transforma a vontade em metáfora do novo e em renovação de expectativas. Tudo parece caminhar para pior, sem a perspectiva de um qualquer golpe de asa capaz de inverter essa direcção. E com isso cresce a certeza de uma iminente explosão incontrolada e de consequências imprevisíveis, o que pode significar o fim doloroso de todas as referências mas também o início de uma aventura sem par, de exaltação da vida e de entrega incondicional às paixões mais arrebatadoras e amotinadas.

Com o presente envenenado pelas nuvens da barbárie
O futuro já não é uma fonte de esperança
Só nos resta a indigência
Ou morrer de morte certa como heróis de pechisbeque
Neste grande fogaréu de aparato e opulência
Em que farra o capital

Pássaros a Esvoaçar

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Desempregados famélicos deambulam pela cidade
À procura de um naco de pão, à procura de uma oportunidade
Bandos de fantasmas esqueléticos que se juntam ao fim da tarde
Como pássaros a esvoaçar à volta de cães a ladrar

Ei rapariga, porque arrastas os pés pela calçada?
Há um assassino que te quer como prémio de consolação
O dinheiro paga o teu silêncio e leva-te para outra dimensão
Lá onde os dias não custam a passar e as noites são de sedução

Como pássaros a esvoaçar à volta de cães a ladrar
Bandos de fantasmas esqueléticos juntam-se ao fim da tarde
À procura de um naco de pão, à procura de uma oportunidade
Ainda crentes das doces palavras que lhes serve a caridade

Preces Perdidas

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael


Preces perdidas, sinistras

Prantos, segredos sombrios, canseiras

Mortes sonoras, vividas

Bocas famintas, sumidas, vestidos terríveis, antigos

Folhas quebradas, correndo, martelos escuros, calados


Vivos, cavalos alados, cadeiras

Redes caladas, orelhas sofridas, secretas

Medos, segredos, retratos horríveis

Cheiros galgando cidades, amores desfeitos, chorados


Sonhos correndo, doridos, fechados

Gritos, lamentos, misérias, lamentos, desgostos rangendo

De Coração Aceso

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Chegaram os tempos indignos da morte e da loucura.
Tomado pela vertigem, danço sobre os destroços do futuro
Ébrio de sangue e de lágrimas, num rodopio interminável
Que me arranca a carne e queima os ossos ainda delicados.

O vento arrasta-me contra vontade para a cidade morta,
Esse vazio varrido pelos ventos, sem sol, sem lua, sem estrelas,
Apenas um riscar de fósforo sobre o manto negro da noite
Onde vagueiam os abismos da embriaguez e da dor humana.

Ouvem-se os silvos de comboios, a fuligem de ossos queimados
E as crianças mortas que falam com as suas mães.
Seguro entre as mãos
O coração dos inocentes.

Da cidade vejo ainda o lugar de todos aqueles que se foram
E o das crianças, que são especialistas na matéria.
Seguro entre as mãos
O coração dos inocentes.

Nem um só homem se aguenta de pé no mutismo da cidade
E as crianças há muito que pararam de brincar.
Seguro entre as mãos
O coração dos inocentes.

Com sangue do meu coração ficará manchado o caminho
Porque só as crianças mantêm a mente intacta
E só com carícias se pode apagar
Um coração a arder.

Mulher Clitóris Morango

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Como são tristes os tempos que correm
Como são tristes os dias que passam
Como são tristes as horas que voam
Como são tristes as vidas perdidas
Como são tristes os dias que passam
Como são tristes os tempos que correm

Vamos lutar contra a tristeza (mulher clitóris morango)
Vamos lutar contra a rotina (mulher clitóris morango)
Vamos lutar contra a pobreza (mulher clitóris morango)
Vamos lutar contra a mofina (mulher clitóris morango)

Como são tristes os tempos que correm
Feitos de medo e de paz e sossego, sem qualquer sonho que aponte um caminho
Como são tristes os dias que passam
Tristes - tão tristes -, cinzentos de tédio, cheios de nada e de quebra-cabeças
Como são tristes as horas que voam
Sem um momento de simples deleite, sem qualquer gesta que deixe lembrança,
Como são tristes as vidas perdidas
Breves instantes dispersos no tempo, presos à fome que inquina o juízo

Vamos lutar pela alegria (mulher clitóris morango)
Vamos lutar pela aventura (mulher clitóris morango)
Vamos lutar pelo sustento (mulher clitóris morango)
Vamos lutar pelo folguedo (mulher clitóris morango)
Vamos lutar pela palavra (mulher clitóris morango)
Vamos lutar pelo desejo (mulher clitóris morango)
Vamos lutar pela quimera (mulher clitóris morango)
Vamos lutar todos sem medo (mulher clitóris morango)
Todos sem medo
Sem medo
Sem medo

Os Ossos de Marcelo Caetano

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Os ossos de Marcelo Caetano
Estão de volta ao palácio de S. Bento

Histórias da Cidade

Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz

O céu em fogo do poente
Acende os pavios à cidade
Em mechas de agitação incandescente
Que convidam ao olvido da desdita
Ao colorirem os rostos assombrados
Com as luzências mais inauditas

Ouço já o troar dos canhões a soprar as dores da guerra
E a convocar velhas visões de corpos caídos por terra
Mas ressuscitada a luta de classes como motor da história
Somos todos proletários a batalhar contra a escória

Lembro outros tempos de luta bem valente
Quando as ruas se enchiam de gente destemida
A travar o passo ao medo, a ganhar a fibra da bravura
Domando a pulso o futuro no alento do presente
Eram dias de festa embriagada pela esperança
Que não há maior alegria do que o sonho da vitória

O céu em fogo do poente acende os pavios à cidade
Fazendo troar os canhões no alvor da nova guerra
Que resgata esses tempos de luta bem valente
Em que marchávamos sem temor contra a miséria

Horas de Matar

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Hoje sinto-me resmungão como tudo!
Mesmo a ressaca da cidade me faz impressão.
Pequenas brigas eclodem por todo o lado
Deixando perceber que o mal-estar é geral.
Os pelos eriçados como navalhas,
Também pelo meu relógio são horas de matar.
Lala lalalala lalalalalalala

Um clamor começa a multiplicar-se
Com a multidão, selvagem, a formar um corpo furioso,
Uma máquina demente sedenta de sangue.
Já a polícia é despejada aos magotes pelas ruas.
Mas não há aparato repressivo que sustenha a ira
Das massas embriagadas pelo desespero.
Ultrapassado o limite do ultraje
Toda a violência é legítima autodefesa.
Também pelo meu relógio são horas de matar.
Lala lalalala lalalalalalala

pelo meu relógio são horas de matar

Ficha técnica

Gravado em Janeiro e Fevereiro de 2014 e misturado em Março de 2014 por Zé Nando Pimenta no Estúdio Meifumado – Vila Nova de Famalicão. Masterizado em Março de 2014 por Frederico Cristiano no estúdio 4.º À Esquerda – Braga. Produção de Mão Morta. Capa de Sónia Teixeira Pinto sobre fotografia de Nuno Calado. Editado em Maio de 2014. Edição original NorteSul.

  • Adolfo Luxúria Canibal – voz
  • Miguel Pedro – bateria, percussões, programações, voz
  • António Rafael – piano, sintetizador, guitarra, voz
  • Vasco Vaz – guitarra, voz
  • Sapo – guitarra, taça tibetana, voz
  • Joana Longobardi – baixo
  • João Soares – voz

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