Mão
Morta

mão morta nus

Nus

Gumes

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

1.
Na noite que se avizinha, um mar de gatos com cio invade os sótãos, ensanguentando as memórias com a dor pungente dos dias em que o gume, o terrível gume das horas afiadas, rasgava os espíritos. Já o clarão das ruas toldava os cérebros com angústias venenosas e vertigens de suicídios sonhadores, na vontade de fugir ao inóspito vazio do tempo da ausência...

2.
Acção!
Isto é um assalto!...
Todos de mãos no ar!
Não quero nem um gesto...

Passa para cá esse vil carcanhol
Para irmos daqui sem funerais!...
Anda homem ou és um caracol?!
Não quero ficar aqui à espera dos maiorais...

(Vai junto à porta ver se o caminho está livre para a nossa saída...)

No chão! Quero toda a gente no chão...
Assim!... Vamo-nos pirar!...
Já!

3. Eu sou estas mãos que se fendem na areia como um velho pau A serpente que se arrasta o corpo em assaltos ao olho do cosmos Tudo vem a mim a escura escama dura dos monstros do fogo Um ventre de rei em corcel alado de freio nos dentes Flash

Aí está Stanislau

Belo como estrela-do-mar gigante em asilo de lepra
A tirar a espinha às horas
Vem
Vem
Vem
Flash

Flores carnívoras passam sua língua no ventre do lacrau
Os seus lábios grossos deixam escorrer o esperma quente
Prova a minha orelha
Prova o meu caixão
A morte ronda
A vida cresce
Floresce
Flash
Amanhece

4.
Estou farto disto
Não posso mais
Todos os dias
Passam iguais
Como um fantasma
Com escorbuto
Corro a cidade na busca de um chuto
Speed ou heroa
Coca ou morfina
Tudo me serve
Como vacina
Desde que traga a santa narcotina
Furam-me os ossos
Caem-me os dentes
Reflicto ao espelho sinais indigentes
Mas o pavor
É da ressaca e da dor

Já desvairado
Com tanta volta
Sempre sem ver
Poda ou recolta
Fico em suores
Vem-me a carência
Sinto-lhe a mão sem qualquer clemência

Pica-me as pernas
Prende-me as costas
Fere-me os tímpanos
Em dores expostas
No rito ansioso do coçar das crostas
Não posso mais
Tudo o que eu quero
É ver-me livre deste ruim desespero
Um caldo tal
Que seja um ponto final

5.
O rei mimado está
Feliz e sem rival
E verte para mim
Cem gotas de água e sal
Aos saltos e pinotes
Percorre agora o chão
Mas pára para lutar
À vista de um dragão
Batuques e tambores
Ilustram o combate sem dó
Alguém me afaga a lã
Me puxa num trenó
Me leva na manhã
Do sol-e-dó

Acordam os amores
No reino da paixão
São elfos e duendes que
Nos levam pela mão
As folhas são azuis
O sol vermelho está
A relva sua e diz que
A vida é um sofá para gozar
São monstros de cordel
Histórias de encantar
No espelho de Babel
A festa não tem fim
Volteia agora o vento
E eu peço um gin

6. Vamos lá então juntos recitar
Este belo acordo que nos vai ligar
Juro pela vida nunca me trair
Juro pela vida sempre resistir
Juro pela vida nunca obedecer
A qualquer vontade fora do meu ser
Juro pela vida sempre acreditar
No poder sagrado que nos faz amar
Juro pela vida sempre contrapor
O valor da festa contra o tédio em vigor
Juro pela vida todo me entregar
À paixão do jogo do corpo e do criar
Radical radical radical
Hei-de ser no agir no pensar
Só na luta há festa só na luta há gozo
Para ter um destino aventuroso
Eis o Graal nosso Graal

O mundo é nosso vamos a ele
O mundo é nosso não há que ter medo
O mundo é nosso vamos com ele brincar

7. - Ouviste o que disse o aquecedor?
- Como?
- Repara na luz. Repara como muda de intensidade... Está a dizer qualquer coisa!
- Mas isso é um aquecedor, não fala!!!
- Shut!... Não ouves o murmúrio?... Está a dizer qualquer coisa!
- Mas isso é o barulho da electricidade a passar...
- Shut!... Escuta!...
- Deixa-te de tretas. Vamos embora!
- Não posso.
- Não podes?!?...
- Tenho de ficar ao pé da luz. Está a querer dizer-me qualquer coisa! É importante!...
- Importante?!? Ainda acabas é na Casa Amarela a apanhar choques eléctricos...
- Pois eu acho que há aqui uma entidade qualquer, um ser de outra dimensão, uma energia cósmica, a tentar estabelecer contacto comigo... Repara no cintilar, nas pequeninas explosões de luz... Isto não é electricidade!
- Não!... Isso não é electricidade... São miolos a fritar!
- O quê?
- Disse que tens os miolos a fritar. Deve ser do calor...
- Por acaso estou cheio de frio!... Não queres ligar o aquecedor?
- Mas tens o aquecedor no máximo! Nem sei como não te queimas, aí tão perto...
- Shut!... Escuta!...
- Bom, vou-me embora! Depois conta-me o que te disse o ET...

8. Assomados, com o andar titubeante das vítimas da realidade absoluta, desfalecemos em convulsões de electrochoque no turbilhão da engrenagem triturante que nos transportou em sucessivas oscilações sísmicas para o apaziguamento da indiferença e o amargo isolamento da solidão. Nada é o que era, nada foi o que sonhamos, apenas visões esfumadas ao contacto da memória, apenas imprecisas impressões de um tempo gasto pela usura. Tivemos o mundo, fomos o mundo...
Salve, cadáveres brancos da inocência!
Salve, corpos belos do amor!
Salve, feiticeiros da embriaguez permanente!
Salve, magos da existência não fragmentária!
Salve, pederastas do desejo, junkies do caos, prisioneiros da liberdade!
Salve, irreprimível lúdico!
Salve, criadores de vida, amantes da infância, viciados do presente!
Salve, órfãos perdidos!
Salve! Salve! Salve!

Gnoma

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Dá-me mais quero mais
Desse vinho bem forte
Acre sol estival
De uma vida em desnorte
Já perdi o que tinha
A família a consorte
Para ser mero pó
Falta só vir a morte A morte!

Tem calma irmão
Que a morte está aí para todos nós
E à parte as mães
Ninguém pode afirmar de viva voz
Que deixa cá algo
Quando a vida nos solta enfim os nós

Serve então mais um copo
Uma noite a beber
Não fará mal pior
E dará para esquecer
O vazio que me ataca
Esta dor de viver
A feroz solidão
Que me faz querer morrer Morrer!

Tem calma irmão
Que a morte não precisa do teu sim
É coisa certa
Mais vale fazer da vida um festim
Canta antes dança
Que a vida não te surja mais ruim

Cantar eu?
Dançar dizes tu...
Serve então mais um copo para ajudar

Tem calma irmão
Que a morte não precisa ser assim
Canta e vais ver
Que a vida não te larga mais por fim

Vertigem

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Ficamos horas a brincar sob a noite serena de verão
sentindo a leveza do futuro na ponta dos dedos
a confiança do absoluto
e a alegria do presente em estrofes perdidas nos confins dos séculos
num espantoso enlace com a beatitude
e as ideias terríveis
que nos assaltam o cérebro num faiscar de exaltação demente
como se o desejo fosse magia
na vertigem dos carros roubados para ir até à praia
como se o sangue que corre mais forte em crescendos de angústia
pudesse encharcar a terra e florir num outro espaço.

Vertigem!...

Depois estendidos no recato das dunas
a memória dos dias olvidada em agulhas rombas
ouvimos o jazz abrir a imaginação para deleites cruéis e labirintos obscuros
despertando monstros escondidos
esvoaçando vampiros sanguinários por entre as sombras da realidade
num orgasmo de gritos sufocados e silêncios circulares
a droga que nos ilumina a mente
em torrentes de lava e espasmos descontrolados
a encher a noite de fantasmas longínquos e rodopios sonoros
o latido dos cães
num sarcasmo de conto de fadas.

Vertigem!...

Tudo é negro menos os nossos olhos
que dardejam luz no estupor da montanha incendiada pelo sol levante
já os nossos risos nervosos
soltos na velocidade da paisagem
desfilam para trás num bater de asas aflito e assustado
e o velho saxofone
como sereia rouca em calores de perdição
num sobressalto de vagas repentinas
abafa o chiar dos pneus
imprimindo correrias loucas ao granito macio da estrada
com que o mar cava a areia até aos nossos pés.

Vertigem!...

Estilo

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

na lapela uma agulha adornada c’um brilhante
na orelha uma argola de pirata petulante
o andar afectado de quem anda nas alturas
espreitando do bolso um folheto com torturas
ou então um volume de cozinha libertária
que ninguém percebia ao fazer a culinária

todo o dia a jogar a um jogo de charadas
entre copos de absinto e mistelas inaladas
recitamos poemas em delírio fonético
inventamos dadá em registo frenético
e depois já cansados vamos todos para a cama
numa orgia colectiva que não vinha no programa

é preciso é estilo! não cansamos de dizer
num verniz de desdém que nos dá muito prazer
assumindo o deboche cada vez mais descarado
insurrectos em graça adorando o acto ousado
somos fãs da desbunda do deleite permanente
e assim passa o tempo e com ele nova gente

é preciso é estilo em delírio fonético
é preciso é estilo adorando o acto ousado
é preciso é estilo de pirata petulante
é preciso é estilo vamos todos para a cama
é preciso é estilo em deleite permanente
é preciso é estilo de quem anda nas alturas

Tornados

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Alucinado
Órfão de amores
Pus fogo à casa
Rufei tambores
Os cães rosnando
A dor também
Não tive medo
De ir mais além
O peito arde
Ardem cidades
Veias do mundo
Na tempestade

Antes assim
Visito a morte
Passa-me a língua
No sexo forte
Veludo rubro
Em carne viva
Garganta funda
Super activa

São ventos de outra era
Que me sopram na memória
Tornados de quimera
Que ficaram na história
São beijos pueris
De traições anunciadas
São fúrias febris
Dementes, desesperadas

Cárcere

Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz

As noites de solidão sob as estrelas No vazio do teu quarto
A casa encaixotada O soalho E as horríveis linhas paralelas até à parede
O nada absoluto Que te faz vomitar e te tortura
Nessa letargia de junkie sem tempo Fora do tempo

Tudo por um grama de pó
Não era isto a revolução
Não era esta a liberdade lisérgica que te estava prometida

E as cinzas vermelhas dos teus olhos Em contrabando de afectos
Sentindo o vácuo E o medo de não ter a merda do pó De acordar sem a merda do pó
Os músculos rígidos O poderoso nó no estômago Que te faz saltar as tripas
O medo de não poderes fugir de ti De não conseguires esquecer esse corpo

Tudo por um grama de pó
Não era isto a revolução
Não era esta a liberdade lisérgica que te estava prometida

Esse corpo que já não serve para nada Retalhado na sua cosmogonia
Que te tortura na sua inactividade Que te prende agora ao quotidiano metálico da prisão
Morto nos odores da humidade Dejecto pútrido Esperma
Em valsas sonhadas no ressonar da noite de cimento que te envolve

Morgue

Adolfo Luxúria Canibal / Sapo

as paredes brancas da morte
frio
vácuo
arrepio
gelo
as paredes brancas da morte
calafrio
metal
rocio
luz
vazio
húmido
luzidio
morgue
morgue
morgue
vácuo frio
gelo luzidio
metal arrepio
húmido calafrio
morgue
morgue
morgue

mão morta nus

Ficha técnica

Gravado em Agosto e Setembro de 2003 e Janeiro de 2004 por Nelson Carvalho na Casa do Rolão – Braga e no Estúdio MB – Vila Nova de Gaia e misturado em Fevereiro e Março de 2004 por Nelson Carvalho no Estúdio MB – Vila Nova de Gaia. Produção de Miguel Pedro, António Rafael e Nelson Carvalho. Capa de José Carlos Costa. Editado em Abril de 2004. Edição original Cobra.

  • Adolfo Luxúria Canibal – voz
  • Miguel Pedro – bateria, programações, sintetizador, voz
  • António Rafael – guitarra, piano, sintetizador, programações, voz
  • Vasco Vaz – guitarra, voz
  • Sapo – guitarra, voz
  • Joana Longobardi – baixo, contrabaixo
  • Marta Ren – voz
  • Miguel Guedes – voz
  • Pedro Laginha – voz
  • Adriano Gonçalves – clarinete
  • Vasco Leandro – clarinete
  • Ângelo Freitas – contrabaixo
  • Sacha Ioffe – contrabaixo
  • Luís Leite – violoncelo
  • André Araújo – viola de arco
  • Filipa Abreu – violino
  • Rui Guimarães – violino
  • Debora Costa – violino
  • José Miguel Gomes – violino
  • Yacha Mar – viola de arco, violino

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