Mão
Morta

maldoror

Maldoror

O Herói pt. 1

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom.
Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos.
Direi em poucas palavras como Maldoror foi bom nos seus primeiros anos em queviveu feliz.
Está dito!

O Herói pt. 2

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Apercebeu-se depois que tinha nascido mau. Fatalidade extraordinária! Escondeu o seu carácter tanto quanto pôde, durante um grande número de anos. Mas por fim, por causa desta concentração que não lhe era natural, todos os dias o sangue lhe subia à cabeça. Até que, não podendo mais suportar tal vida, se atirou resolutamente para a carreira do mal. Doce atmosfera! Quem diria? Quando beijava uma criança de rosadas faces teria gostado de lhe arrancar as bochechas à navalhada, e tê-lo-ia muitas vezes feito se a justiça, com o seu longo cortejo de castigos, o não tivesse sempre impedido. Não era mentiroso, confessava a verdade e dizia-se cruel. Humanos, ouvis? Ele ousa repeti-lo com esta voz que treme! Ele é então um poder mais forte que a vontade... Maldição!

A Maldade

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Deve-se deixar crescer as unhas durante quinze dias. Oh como é doce arrancar brutalmente da cama uma criança que nada tem ainda sobre o lábio superior e, com os olhos bem abertos, fingir que se lhe passa suavemente a mão na testa, inclinando-lhe para trás os seus lindos cabelos. Depois, de repente, no momento em que ela menos espera, enterrar-lhe as unhas compridas no peito mole, de modo a que não morra! Porque, se morresse, não se teria mais tarde o espectáculo das suas misérias!... Seguidamente, bebe-se o sangue lambendo as feridas. E durante esse tempo, que devia durar tanto quanto dura a eternidade, a criança chora! Nada é tão bom como o seu sangue, extraído como acabo de dizer, e ainda quentinho, a não ser as suas lágrimas, amargas como sal. Homem, nunca provaste do teu sangue quando por acaso te cortaste num dedo? É bom, não é? Porque não tem gosto nenhum.

A Prostituição

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Fiz um pacto com a prostituição para semear a desordem nas famílias.
Recordo-me da noite que precedeu esta perigosa ligação. Vi um túmulo à minha frente. Ouvi um pirilampo, grande como uma casa, que me disse: “Vou-te alumiar. Lê a inscrição. Não é de mim que vem esta ordem suprema.” Uma vasta luz cor de sangue, em face da qual me bateram os dentes e os braços me caíram inertes, espalhou-se pelos ares, até ao horizonte. Apoiei-me contra um muro em ruínas, pois estava quase a cair, e li: “Aqui jaz um adolescente que morreu de tísica. Bem sabeis porquê. Não oreis por ele.” Muitos homens não teriam tido, talvez, a coragem que eu tive.
Entretanto uma bela mulher, nua, veio deitar-se a meus pés. E eu para ela, de rosto triste: “Podes levantar-te.” Estendi-lhe a mão com que o fratricida corta o pescoço à irmã. Diz-me o pirilampo: “Pega numa pedra e mata-a.” “Porquê?”, disse eu. E ele: “Toma cuidado contigo. És o mais fraco, porque eu sou o mais forte. Esta chama-se prostituição.”
De lágrimas nos olhos, a raiva no coração, senti nascer em mim uma força desconhecida. Peguei numa grande pedra. Depois de muitos esforços, ergui-a a custo à altura do peito. Coloquei-a em cima do ombro, com os braços. Subi a uma montanha, até ao alto. Dali, esmaguei o pirilampo.

A Menina

[Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro]

Fazendo um passeio quotidiano, todos os dias passava numa rua estreita. Todos os dias uma esbelta menina de dez anos me seguia, à distância, respeitosamente, ao longo dessa rua, olhando-me com pálpebras simpáticas e curiosas. Era alta para a idade e tinha um corpo bem lançado. Abundantes cabelos negros, divididos em dois no alto da cabeça, caíam-lhe em tranças independentes sobre uns ombros de mármore. Menina, tu não és um anjo e hás-de tornar-te, afinal, como as outras mulheres! Não, não, peço-te: não tornes a aparecer diante dos meus sobrolhos franzidos e vesgos!
Num momento de desvario poderia pegar-te nos braços, torcê-los, como à roupa lavada para lhe tirar a água, ou parti-los ruidosamente, como a dois ramos secos, e depois fazer-tos comer, à força.
Poderia, segurando-te a cabeça entre as mãos, com ar caricioso e doce, enterrar-te os dedos ávidos nos lóbulos do teu cérebro inocente, para daí extrair, sorriso nos lábios, um unto eficaz que me lave os olhos doridos pela eterna insónia da vida. Poderia, cosendo-te as pálpebras com uma agulha, privar-te do espectáculo do universo e pôr-te assim na impossibilidade de encontrares o teu caminho – não serei eu a servir-te de guia!
Poderia, erguendo o teu corpo virgem com braço de ferro, agarrar-te pelas pernas, fazer-te girar à minha volta, como uma funda, concentrar as forças na última circunferência, e lançar-te contra um muro.

O Naufrágio

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Sentei-me num rochedo, junto ao mar. Um navio acabava de soltar todas as velas, para se afastar destas paragens. A tempestade ia começar os seus ataques e já o céu escurecia, tornando-se de um negro quase tão horrendo como o coração do Homem.
O navio, que era um grande barco de guerra, baixava agora todas as suas âncoras, para não ser varrido contra os rochedos da costa. O vento assobiava com furor dos quatro pontos cardeais e desfazia as velas. Os trovões estalavam por entre os relâmpagos. O balançar daquelas massas de água não tinha conseguido quebrar as correntes das âncoras, mas os seus abalos tinham entreaberto um veio de água nos flancos do navio. Enorme brecha, pois as bombas não eram bastantes para expulsar as pilhas de água salgada que, espumando, se vinham abater sobre a ponte, como montanhas. O navio em perigo dispara tiros de canhão como sinal de alarme. Mas afunda-se lentamente… Majestosamente… Aquele que nunca viu um barco afundar-se no meio do furacão, da intermitência dos relâmpagos e da escuridão mais profunda, enquanto aqueles que lá estão são prostrados pelo desespero que se imagina, esse, não conhece os acidentes da vida!
Por fim ergue-se um grito universal de imensa dor de entre os flancos do barco, enquanto o mar redobra os seus ataques temíveis. É o grito que o abandono das forças humanas fez soltar. Cada um se embrulha no manto da resignação e entrega a sua sorte nas mãos de Deus! O navio em perigo dispara tiros de cachão como sinal de alarme. Mas afunda-se lentamente… Majestosamente… Fizeram trabalhar as bombas durante todo o dia. Esforços inúteis!
A noite chegou, espessa, implacável, para levar ao cúmulo aquele gracioso espectáculo. Cada um vai pensando que, uma vez na água, não poderá mais respirar; mas exorta-se a reter o fôlego o mais possível, para prolongar a vida por dois ou três segundos. É a vingadora ironia que quer lançar à morte! O navio em perigo dispara tiros de canhão como sinal de alarme. Mas afunda-se lentamente… Majestosamente… É um erro! Já não dispara tiros de canhão. Não se afunda. A casca de noz foi tragada completamente.
Oh céus, como é possível viver depois de ter provado tanta volúpia? Fora-me dado ser testemunha das agonias de morte de alguns dos meus semelhantes. Minuto a minuto, seguira os incidentes das suas angústias. Da costa, insultava-os, lançando-lhes imprecações e ameaças. Julgava que eles me ouviam!

A Cópula

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Quando o lugar onde o barco travara o combate mostrou claramente que ele tinha ido passar o resto dos seus dias para o rés-do-chão do mar, então aqueles que tinham sido levados pelas ondas reapareceram, em parte, à superfície. Agarraram-se uns aos outros pela cintura, dois a dois, três a três!... Era a maneira de não salvarem a vida, porque os seus movimentos ficavam embaraçados e eles iam ao fundo, como bilhas furadas.
Que legião de monstros marinhos é aquela, que vai cortando as ondas rapidamente? São seis. As suas barbatanas são vigorosas e abrem passagem através das vagas alterosas. De todos esses seres humanos que movem os seus quatro membros naquele continente pouco firme, os tubarões fazem rapidamente uma omeleta sem ovos e partilham-na segundo a lei do mais forte. O sangue mistura-se com a água e a água mistura-se com o sangue. Os seus olhos ferozes são suficientes para iluminar a cena da carnificina…
Uma enorme fêmea de tubarão vem tomar parte na pasta de fígado de pato e comer o cozido frio. Está furiosa, porque vem esfomeada. Inicia-se uma luta entre ela e os tubarões para disputarem os poucos membros palpitantes que flutuam, por aqui, por ali, sem dizerem nada, à superfície da nata vermelha. À direita, à esquerda, ela vai dando dentadas que geram ferimentos mortais. Mas três tubarões vivos ainda a rodeiam e ela é obrigada a rodar em todos os sentidos para lhes frustrar as manobras. Com uma crescente emoção, desconhecida até aí, o espectador, da costa, segue aquela batalha naval de um género novo. Tem os olhos fitos na corajosa fêmea de tubarão, de dentes tão fortes. Não hesita mais, encosta a espingarda ao ombro e, com a habitual destreza, aloja uma bala no ouvido de um dos tubarões, no momento em que aparecia acima de uma onda. Restam dois tubarões, que mostram um encarniçamento ainda maior. Do alto do rochedo, o homem de saliva salobra atira-se ao mar e nada para o tapete agradavelmente colorido, segurando na mão a faca de aço que nunca o abandona. Agora, cada um dos tubarões tem o seu inimigo. Avança para o seu cansado adversário e, com vagar, enterra-lhe no ventre a lâmina aguçada. A cidadela móvel desembaraça-se facilmente do último adversário.
Encontram-se frente a frente o nadador e a fêmea de tubarão, salva por ele. Olham-se nos olhos durante alguns minutos e cada um se espanta por encontrar tanta ferocidade no olhar do outro. Então, de comum acordo, entre duas águas, deslizaram um para o outro, com uma admiração mútua, a fêmea de tubarão afastando a água com as barbatanas, Maldoror batendo as ondas com os braços, e retiveram a respiração, numa veneração profunda, ambos desejosos de contemplar, pela primeira vez, o seu retrato vivo. Chegados a três metros de distância, sem qualquer esforço, caíram de repente um contra o outro, como dois ímanes, e abraçaram-se com dignidade e gratidão, num abraço tão terno como de irmão e irmã.
Os desejos carnais seguiram de perto esta manifestação de amizade. Duas coxas nervosas colaram-se estreitamente à pele viscosa do monstro, como duas sanguessugas, e os braços e as barbatanas entrelaçados em redor do corpo do objecto amado, que apertavam com amor, enquanto as gargantas e os peitos já não passavam de uma só massa glauca com exalações a sargaço, no meio da tempestade que continuava, à luz dos relâmpagos, tendo por leito nupcial a espumosa vaga, levados por uma corrente submarina como num berço e rodando sobre si próprios para as profundezas desconhecidas do abismo, uniram-se numa cópula longa, casta e horrorosa.

A Poesia

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Até aos nossos dias a poesia seguiu um caminho errado. Elevando-se até ao céu ou rojando-se até à terra, menosprezou os princípios da sua existência e foi, não sem razão, constantemente ridicularizada pelas pessoas honestas. Não foi modesta, que é a qualidade mais bela que deve existir num ser imperfeito.
Eu quero mostrar as minhas qualidades, mas não sou tão hipócrita que esconda os meus vícios. O riso, o mal, o orgulho, a loucura, hão-de surgir, alternadamente, entre a sensibilidade e o amor da justiça e servirão de exemplo à estupefacção humana: cada um se reconhecerá aí, não tal como devia ser mas tal como é! E talvez este simples ideal, concebido pela minha imaginação, venha a ultrapassar, no entanto, tudo o que a poesia descobriu até aqui de mais grandioso e de mais sagrado. Porque, se eu deixar transpirar os meus vícios, todos acreditarão melhor nas virtudes que faço resplandecer e cuja auréola porei tão alto que os maiores génios do futuro hão-de testemunhar, por mim, sincero reconhecimento. Assim, pois, a hipocrisia será expulsa, decididamente, da minha morada! Haverá nos meus cantos uma imponente prova de poder, por desprezar assim as opiniões herdadas!
Ele canta só para ele e não para os seus semelhantes. Ele não coloca a medida da sua inspiração na balança humana. Nos seus combates sobrenaturais atacará o Homem e o Criador, com vantagem, como quando o espadarte crava a sua espada no ventre da baleia: maldito seja, pelos seus filhos e pela minha mão descarnada, aquele que persiste em não compreender os cangurus implacáveis do riso e os audaciosos piolhos da caricatura!...

A Porcaria

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.
As crostas e pústulas da lepra escamaram-me a pele, coberta de pus amarelo. Não conheço a água dos rios nem o orvalho das nuvens. Na minha nuca, como num fumeiro, cresce um enorme cogumelo, de pedúnculos umbelíferos. Sentado num traste informe, não mexi os membros desde há quatro séculos. Os meus pés tomaram raiz no solo e compõem, até ao ventre, uma espécie de vivaz vegetação, cheia de ignóbeis parasitas, que não deriva ainda da planta mas que já não é carne. No entanto, o meu coração bate. Mas como poderia ele bater se a podridão e as exalações do meu cadáver (não ouso dizer corpo) não o nutrissem abundantemente?
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam. Na axila esquerda, uma família de sapos fez morada e quando um se mexe faz-me cócegas. Tomai cuidado, não vá fugir algum e que vá roçar com a boca no interior da vossa orelha!... Era capaz de depois vos entrar no cérebro! Na axila direita há um camaleão que lhes dá caça incessante para não morrer de fome: todos têm que viver! Mas quando uma das partes frustra completamente as manhas da outra, não encontram nada melhor para fazer do que não se incomodarem e chupam a delicada gordura que me cobre as costas. Já estou habituado.
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam. Uma víbora malvada devorou-me o pénis e tomou o seu lugar. Tornou-me eunuco, aquela infame! Oh, se eu tivesse podido defender-me com os meus braços paralisados… Mas creio antes que eles se transformaram em cavacos! Seja como for, importa constatar que o sangue já lá não vai passear a sua vermelhidão. Dois pequenos ouriços, que pararam de crescer, deitaram a um cão, que não recusou, o interior dos meus testículos: a epiderme cuidadosamente lavada, meteram-se dentro dela. O ânus foi interceptado por um caranguejo: animado pela minha inércia, guarda a entrada com as suas pinças e faz-me doer muito. Duas medusas atravessaram os mares imediatamente atraídas por uma esperança que não foi iludida. Olharam com atenção as duas partes carnudas que formam o traseiro humano e, fixando-se no seu contorno convexo, esmagaram-nas tanto por uma pressão constante que os dois pedaços de carne desapareceram, ficando lá dois monstros saídos do reino da viscosidade, iguais na cor, na forma e na ferocidade.
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam. Não faleis da minha coluna vertebral, porque é uma espada. Sim… Sim, não estava a reparar!... A vossa pergunta tem toda a razão de ser! Desejais saber, não é verdade, como é que ela se encontra verticalmente implantada nos meus rins? Nem mesmo eu me lembro muito claramente. No entanto, se me decidir a tomar por recordação o que talvez não passe de um sonho, sabei que o Homem, quando soube que eu tinha feito o voto de viver com a doença e a imobilidade até vencer o Criador, veio por trás de mim, na ponta dos pés… Mas não tão levemente que eu o não ouvisse! Não percebi mais nada durante um instante, que não foi longo. Aquele punhal afiado enterrou-se até ao cabo entre as duas espáduas do touro de morte e a sua ossatura estremeceu como um tremor de terra. A lâmina adere tão fortemente ao corpo que ninguém até agora a conseguiu extrair. Os atletas, os mecânicos, os filósofos, os médicos, tentaram, cada um por si, os meios mais diversos. Não sabiam que o mal feito pelo Homem não pode mais ser desfeito!
Estou sujo. Roído de piolhos. Os porcos, quando olham para mim, vomitam.

O Sonho

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Vasco Vaz

Eu sonhava que tinha entrado no corpo de um suíno, do qual me não era fácil sair, e que chafurdava os pêlos nos lodaçais mais imundos. Seria como recompensa? Tal como desejara, já não pertencia à Humanidade! Por mim, entendi assim a interpretação do sonho e senti com isso uma alegria mais que profunda. A metamorfose nunca surgiu a meus olhos senão como a alta e magnânima ressonância de uma felicidade perfeita, que há muito esperava. Tinha chegado finalmente o dia em que eu era um suíno! Experimentava os dentes nas cascas das árvores… O meu focinho: contemplava-o com delícia. Já não me restava a mínima parcela de divindade! Consegui elevar a alma até à excessiva altura desta inefável delícia…
Escutai-me pois, e não coreis, inesgotáveis caricaturas do belo, que levais a sério o ridículo zurrar da vossa alma, soberanamente desprezível. E que não compreendeis por que motivo o Todo-Poderoso, num raro momento de excelente paródia – que decerto não ultrapassa as leis gerais do grotesco –, se deu um dia ao mirífico prazer de fazer habitar um planeta por seres singulares e microscópicos chamados humanos, cuja matéria se assemelha à do coral vermelho. Claro que tendes razão para corar, ossos e gordura, mas escutai-me. Eu não invoco a vossa inteligência. Vós faríeis com que fosse expulsa do sangue pelo horror que ela vos testemunha. Esquecei-a e sê-de consequentes com vós próprios.
Agora, não havia mais constrangimentos. Quando queria matar, matava! E isso até me acontecia muitas vezes e ninguém mo impedia. As leis humanas ainda me perseguiam com a sua vingança, embora eu não atacasse a raça que tinha abandonado com tanta tranquilidade. Mas a minha consciência não me acusava de nada!

O Escaravelho

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Eu via à minha frente um objecto, de pé, sobre um outeiro. Não lhe distinguia nitidamente a cabeça, mas bastava para perceber que não era de forma vulgar.
Um escaravelho rolava pelo chão, com as mandíbulas e as antenas, uma bola cujos principais elementos eram compostos de matérias excrementosas, e avançava a passos rápidos para o mencionado outeiro, esforçando-se por pôr bem em evidência a vontade que tinha em tomar essa direcção. Aquele animal articulado não era muito maior que uma vaca.
Se duvidais do que digo vinde ter comigo e eu satisfarei os mais incrédulos com o depoimento de boas testemunhas.
Eu segui-o de longe, ostensivamente intrigado. Que queria ele fazer com aquela grande bola negra? O escaravelho tinha chegado à base do outeiro. Eu tinha acertado os meus passos sobre as suas pisadas, mas encontrava-me ainda a grande distância do local da cena. Eu não estava tranquilo e atirava as pernas para a frente com muita lentidão. Que era então a substância corpórea para a qual me dirigia? Eu sabia que a família dos pelecanídeos compreende quatro géneros distintos: a anhinga, o pelicano, o alcatraz e a fragata. A forma acinzentada que me aparecia não era uma anhinga. O bloco plástico que eu distinguia não era uma fragata. A carne cristalizada que eu observava não era um alcatraz. Via-o agora, ao homem de encéfalo desprovido de protuberância anular! Embora não possuísse um rosto humano, parecia-me belo como os dois longos filamentos tentaculiformes de um insecto; ou melhor, como um enterro precipitado; ou ainda, como a lei da reconstituição dos órgãos mutilados; e sobretudo, como um líquido eminentemente putrescível. Mas, não prestando qualquer atenção ao que se passava nas redondezas, o estrangeiro olhava sempre em frente com a sua cabeça de pelicano.
Um dia destes, hei-de voltar ao fim desta história.

O Pederasta

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Oh, se em lugar de ser um inferno, o universo não passasse de um imenso ânus celeste: olhem o gesto que faço com o baixo-ventre! Sim, teria introduzido o meu pénis através do seu esfíncter sangrento, despedaçando com os meus movimentos impetuosos as próprias paredes da sua bacia! A desgraça não teria então soprado para os meus olhos cegos dunas inteiras de areia movediça. Teria descoberto o lugar subterrâneo onde jaz a verdade adormecida e os rios do meu esperma viscoso teriam encontrado, desse modo, um oceano onde se precipitarem!
Mas porque dou eu comigo a lamentar um estado de coisas imaginário e que não receberá nunca o cunho da sua ulterior realização? Não vale a pena darmo-nos ao trabalho de construir fugidias hipóteses.
Entretanto, aquele que arder no desejo de partilhar da minha cama que venha ter comigo. Mas ponho uma rigorosa condição à minha hospitalidade: é preciso que não tenha mais de quinze anos! Pelo seu lado, ele que não pense que eu tenho trinta… Que importância tem? A idade não diminui a intensidade dos sentimentos, longe disso. E, ainda que os meus cabelos se tenham tornado brancos como a neve, não é por causa da velhice. É, pelo contrário, devido ao motivo que sabeis… Eu não gosto de mulheres! Nem mesmo dos hermafroditas! Preciso de seres que me sejam semelhantes e em cuja fronte a nobreza humana esteja assinalada em caracteres mais nítidos e inapagáveis.
Uma saliva salobra corre-me da boca, não sei porquê… Quem ma quer chupar, para me livrar dela? Ela sobe… Continua a subir… Sei o que é! Já reparei que quando bebo da garganta o sangue daqueles que se deitam a meu lado (é sem razão que me julgam vampiro, porque isso chama-se aos mortos que saem dos seus túmulos… Ora eu, eu sou um vivo!) no dia seguinte rejeito pela boca uma parte do que bebi. Eis a explicação da saliva infecta! Que quereis que faça se os órgãos enfraquecidos pelo vício se recusam a concluir as funções da minha nutrição? Mas não revelem as minhas confidências a ninguém…
Eu sempre senti um capricho infame pela pálida juventude dos colégios e pelas crianças estioladas das fábricas! As minhas palavras não são reminiscências de um sonho e teria demasiadas recordações a desdobrar se me fosse imposta a obrigação de passar diante dos vossos olhos os acontecimentos que poderiam consolidar, com o seu testemunho, a veracidade da minha dolorosa afirmação. A justiça humana ainda não me surpreendeu em flagrante delito, apesar da incontestável habilidade dos seus agentes. Até já assassinei um pederasta que não se prestava suficientemente à minha paixão: atirei o seu cadáver para um poço abandonado e ninguém tem provas decisivas contra mim!
Porque estremeces de medo, adolescente que me escutas? Julgas que quero fazer-te o mesmo? Estás a mostrar-te soberanamente injusto… Tens razão! Desconfia de mim, sobretudo se és belo!...

O Belo

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

As lojas da rua Vivienne expõem as suas riquezas aos olhos maravilhados. Soaram oito horas no relógio da Bolsa – não é tarde!
Mal a última pancada se deixou de ouvir, a rua cujo nome foi citado começa a tremer e sacode os seus alicerces desde a praça Royal até ao bulevar Montmartre. Os transeuntes estugam o passo e retiram-se, pensativos, para suas casas. Uma mulher desmaia e cai no asfalto. Ninguém a levanta – todos têm pressa em se afastarem destas paragens! As portadas fecham-se com impetuosidade e os habitantes mergulham nos cobertores. Dir-se-ia que a peste asiática revelou a sua presença! Assim, enquanto a maior parte da cidade se prepara para nadar nas folias das festas nocturnas, a rua Vivienne acha-se, de súbito, gelada por uma espécie de petrificação.
Como um coração que deixa de amar, ela viu a sua vida extinta!
Mas depressa a notícia do fenómeno se espalha pelas outras camadas da população e um silêncio sombrio plana sobre a augusta capital. Para onde foram eles, os candeeiros? Que lhes aconteceu, às vendedoras de amor? Nada… A solidão e a obscuridade!...
Ora, naquele lugar que a minha mente acaba de tornar misterioso, se olharem para o lado onde a rua Colbert desemboca na rua Vivienne verão, na esquina formada pelo cruzamento dessas duas vias, um personagem a mostrar o seu perfil e a dirigir os seus passos ligeiros para os bulevares. Mas se nos aproximarmos mais, de modo a não atrairmos sobre nós a atenção daquele transeunte, apercebemo-nos com agradável espanto que é jovem. De longe tê-lo-íamos tomado, na verdade, por um homem maduro! Eu consigo ler a idade nas linhas fisiognomónicas da fronte: ele tem dezasseis anos e quatro meses! É belo como a retractilidade das garras das aves de rapina; ou ainda, como a incerteza dos movimentos musculares nas feridas das partes moles da região cervical superior; ou melhor, como aquela ratoeira perpétua sempre armada pelo próprio animal aprisionado e que pode assim apanhar roedores indefinidamente e funcionar mesmo escondida debaixo da palha; e sobretudo, como o encontro fortuito numa mesa de dissecção de uma máquina de costura e de um guarda-chuva! Chegado à grande artéria, vira à direita e percorre o bulevar Poissonnière e o bulevar Bonne-Nouvelle. Neste ponto do seu caminho segue pela rua do Faubourg Saint-Denis e, deixando atrás de si a estação de caminho-de-ferro de Estrasburgo, detém-se diante de um alto portão antes de chegar à intersecção perpendicular da rua Lafayette.
Já que me aconselhais a terminar aqui, quero, desta vez, obedecer ao vosso desejo.

A Poção

Isidore Ducasse, Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

A poção mais lenitiva que te aconselho é uma bacia cheia de um pus blenorrágico com caroços, no qual se tenha previamente dissolvido um quisto piloso do ovário, um cancro folicular, em prepúcio inflamado arregaçado da glande por uma parafimose e três lesmas vermelhas.
Se seguires o meu conselho, a minha poesia receber-te-á de braços abertos, como um piolho, com os seus beijos, faz a ressecção da raiz de um cabelo.
Está dito.

O Herói pt. 1

Miguel Pedro

maldoror

Ficha técnica

Gravado ao vivo em 11 e 12 de Maio de 2007 por Nuno Couto, com assistência de Filipe Lourenço, na Sala Principal do Theatro Circo – Braga e misturado em Novembro e Dezembro de 2007 por Nuno Couto nos Estúdios Boom – Vila Nova de Gaia. Produção de Mão Morta e Nuno Couto. Capa de Andreia Alves Mendes com pintura de Isabel Lhano. Editado em Fevereiro de 2008. Edição original Cobra.

  • Adolfo Luxúria Canibal – voz
  • Miguel Pedro – electrónica, bateria
  • António Rafael – teclas, xilofone
  • Vasco Vaz – guitarra, xilofone
  • Sapo – guitarra
  • Joana Longobardi – baixo, contrabaixo

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