Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro, Zé dos Eclipses
O bófia empurrava-me e dizia para desandar. Eu não podia compreender porquê. Quis- lhe perguntar. O bófia sacou do cassetete e deu-me com ele uma, duas, três vezes nos costados. Senti um choque eléctrico percorrer-me o corpo. E uma humilhação que não podia ficar impune. Não percebia porque é que ele me batia. Quis-lhe perguntar. Mas o gajo continuou a dar-me cacetadas. E já outros bófias se aproximavam de cassetete na mão. Não ia ficar para ali, especado, feito bombo da festa. Uma raiva surda trepava- me à cabeça. Ah que raiva! Quando dou conta mandava-lhe uma joelhada aos tomates. Senti-os a espalmar de encontro ao joelho. Já os outros bófias descarregavam sobre mim os seus cassetetes virados ao contrário. Senti uma dor de vertigem quando um me acertou na cara. Percebi que a carne se rasgava e que um esguicho de sangue me inundava os olhos. Já me acertavam por todos os lados. Mas não interessava. Já nada interessava.
Sede de sangue! Sede de sangue!
Já nada interessava. A não ser aquele bófia agarrado aos tomates. Num último esforço disparo-lhe um pontapé à cara. Assim, de baixo para cima – pás! Senti a biqueira da bota entrar-lhe pelas fuças dentro. Os ossos a quebrar. Os dentes a saltar numa baba de cuspo e sangue. Os outros bófias continuavam a descarregar sobre mim os seus cassetetes virados ao contrário. Mas eu já nada via. Só sangue. Dores. Senti-me dobrar. Cair. Aaaaaaaaahhh!...
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Pela estrada fora vinha um homem
Encoberto pelas sombras da noite. Alguém
Lhe perguntou o nome. – Sou uma miragem. Dizem que
Semeio o caos e a destruição como o vento
Semeia as papoilas. Meu nome
É Liberdade.
Vinha pela estrada
Fora a Liberdade encoberta pela noite
Das sombras. – Sabes quem eu sou? – Perguntou
Ao candeeiro. – És uma miragem
E pertences ao livro dos sublinhados provocadores
Que são os poetas. Almas sonhadoras.
– Anarquista Duval, prendo-te em nome da lei!
– E eu suprimo-te em nome da liberdade!
Sublinhados provocadores iam pela estrada
Fora carregando o livro
Das sombras. Da noite
Só restava o candeeiro
Encoberto...
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes, Zé dos Eclipses
Tianamen e o massacre de Pequim
Pablo Escobar e o Cartel de Medelin
Mais a queda do muro de Berlim
E a guerra contra Saddam Hussein
Os ataques com gás Sarin
Ou a Chechénia de Vladimir Putin
Putin
Não estava lá
Na Primavera não estava em Praga
No 25 de Abril estava em Braga
Demasiado entretido a crescer
Para dar conta do que estava a acontecer
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos para a Revolução
Fazer a festa
De cocktail na mão
Mas ouvi dizer
Quando o Charles Manson sair da prisão
É que vai ser
Parem o relógio!
Vamos todos aparecer na televisão
De cocktail na mão
Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes
Quero morder-te as mãos!
O teu sexo pelado
Faz de mim um escravo
Animal desvairado
Ansiando teu travo
Quero morder-te as mãos!
Quero-te a urina na boca
Dilacerar-te a valer
Até ficares com a voz rouca
Quero matar e morrer
Quero morder-te as mãos!
Adolfo Luxúria Canibal / Mão Morta
Era uma vez há muitos, muitos anos, um velho Marquês a quem os seus pares chamavam Divino, o Divino Marquês. Ora este Marquês, apesar de conhecido em todo o reino pela violência com que afrontava a tirania moral do seu tempo, passeando um dia por Braga, “a idólatra, o seu esplendor”, ficou hospedado em casa da Sra. de Noronha e Vaz, uma burguesa beata e alcoviteira mas para quem um Marquês, por mal-afamado que fosse, oh oh... era sempre um Marquês!
A Sra. de Noronha e Vaz tinha uma filha, bela e prendada donzela na candura das suas dezoito primaveras, entregue aos cuidados espirituais da madre superiora do Convento das Carmelitas, a quem confiara uma educação casta e temente a Deus. No entanto, iludindo a confiança em si depositada, a madre superiora, iniciada ainda noviça nos prazeres da carne pelo Divino Marquês, há muito que vinha incutindo em Clotilde, assim se chamava a menina de Noronha e Vaz, os desejos mais desbragados. Foi pois sem surpresa e até com bastante satisfação que, quando correu a notícia da presença do Divino na cidade, acolheu as súplicas da sua educanda para que tão nobre personagem lhe fosse apresentado. Ciente de que tal não desagradaria ao Marquês e orgulhosa dos ensinamentos ministrados a Clotilde, a madre superiora tratou de, sem mais delongas, lhes aprontar um encontro.
Entretanto a Sra. de Noronha e Vaz, jubilante por albergar em seus domínios tão ilustre membro da aristocracia, iniciara preparativos para uma grande festa em sua honra que, a pretexto de o apresentar à sociedade bracarense, se revelava ocasião propícia para ela própria se mostrar influente e bem relacionada. E ademais, não menosprezando a fama que sempre o acompanhava, o evento até podia proporcionar excelentes deixas à sua carente alcovitice. Foi pois assim, envolta nestes pensamentos e disposta a nada perder que, chegado o dia da grande festa, se armou de todos os cuidados para discretamente, enquanto simulava instruções a dar aos criados, observar o galante Marquês e a forma despudorada como as convidadas, das mais insuspeitas, descobriam em qualquer futilidade motivo para dele se aproximarem e entabularem conversa.
Como as horas fossem passando e do comportamento dos presentes não emanasse alteração significativa a Sra. de Noronha e Vaz, desalentada com enredo tão pouco substancial, deixou-se tomar por intensa modorra, o que levou os convivas a despedirem-se e o Marquês a recolher aos seus aposentos. Alarmada com o que provocara, achou por bem apresentar imediatas desculpas do sucedido ao seu hóspede e, com esse fito, dirigiu-se apressadamente à ala norte do palácio, onde o aposentara por ser a mais afastada das serventias e a que melhor preservava a intimidade das suas libações nocturnas. Qual não foi, porém, o seu espanto quando, chegada à antecâmara do Marquês, que julgava só, lhe pareceu ouvir o que juraria serem vozes femininas. Disposta a esclarecer a singular ocorrência aproximou-se cautelosamente da porta e, juntando o olho ao orifício da fechadura, espreitou para o interior do quarto, não conseguindo abafar, quase de seguida, um grito de espanto. É que esparramada no leito do Divino, quase irreconhecível sem o costumeiro hábito a compor-lhe a silhueta, entreviu a madre superiora entregue a práticas muito pouco consentâneas com a sua condição de amparo espiritual da cristandade.
– Quem vem lá? – Perguntou a inocente voz de Clotilde. A Sra. de Noronha e Vaz, ainda mal refeita do que acabara de observar, ao ouvir a voz da sua amantíssima filha teve um estremecimento e, lívida de desespero, tombou para dentro do quarto.
– Olha, olha: é a senhora minha mãe! – Exclamou, jocosa, Clotilde – Vem certamente juntar-se a nós e connosco partilhar as terrenas delícias que de si tão arredadas têm andado – acrescentou, perversa, para os seus companheiros de alcova.
– Clotilde! Minha filha! Não posso crer no que os olhos me mostram! - Murmurou, abalada, a Sra. de Noronha e Vaz – Dizei-me, dizei-me que não é verdade! Que tudo não passa de um mal-entendido, de uma torpe ilusão do mafarrico!
– Senhora minha mãe: pretendeis negar a realidade, como aliás sempre negastes a vida, mas não o consentirei. Olhai! Olhai bem o que faço com este belo sexo que tanto gozo me dá! Vede! Vede bem, para que esta imagem jamais vos abandone a retina! – Atalhou desafiadoramente Clotilde. E dizendo isto sentou-se sobre o Marquês que a esperava de mastro garbosamente desfraldado.
– Não, não é verdade! Não reconheço em vós a minha Clotilde, que tão castamente eduquei – balbuciou em pranto a Sra. de Noronha e Vaz e, virando-se para a madre superiora – É a vós!... É a vós que eu devo esta afronta de ver a minha inocente filha transformada na viciosa mais ordinária! Mas vós... Vós haveis de ma pagar!
– Senhora minha mãe! – Interveio do seu poleiro Clotilde – Estou a ver que aqui viestes para nos tentar causar aflição. Sabei, no entanto, que não o conseguireis. E de castigo, pela ameaça que acabais de proferir, irei em vós executar aquilo que, há momentos, o Divino me contou: vou coser-vos o sexo!
– Não, não... Que horror! Não é possível! Gerei um monstro! Um monstro! A minhaprópria filha! – Gritou, em pânico, a Sra. de Noronha e Vaz.
– Agarrem-na! – Ordenou Clotilde.
Gravado e misturado em Dezembro de 1990 por Paulo Jorge no Estúdio Tchá-tchá-tchá – Miraflores. Produção de Mão Morta. Capa de José Carlos Costa. Editado em Junho de 1991. Edição original Área Total.
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