Mão
Morta

Mutantes S.21

Lisboa (por entre as sombras e o lixo)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Lisboa, Cais do Sodré:

Quando chega a noite
Com suas caras fugidias
Olhos dilatados pelo assombro
Deixamos que a cidade nos invada
Fantasma a embriagar-nos de luz e cor
Num sonho de mil e uma fantasias
O desejo cruzando os néons
Em projecções plásticas.

O dealer roubou-me
Levou-me a alma...
“Rai’s parta” o dealer!

E se depois, ao acordarmos
Acaso reparamos na escuridão que nos cerca
No leve restolhar que vem do lúgubre canto
Somos tomados por uma enorme letargia
Que nos deixa permeáveis ao frio da madrugada.
É então que as ratazanas, abandonando as trevas
Ficam estáticas, silenciosas
A verem-nos ir, equilibrando o passo
Por entre as sombras e o lixo.

O dealer roubou-me
Levou-me a alma...
“Rai’s parta” o dealer!

– Táxi! Casal Ventoso s.f.f.!...

Amesterdão (Have big fun)

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Amsterdam!
Have big fun!
Have big fun!

Entrei no Amstel a toda a velocidade e quase abalroei um barco-táxi que ia a passar. O piloto ficou a mandar vir de punho erguido mas eu continuei no máximo de aceleração Amstel abaixo. Adoro sentir o vento frio na cara! Junto ao Munt Plein acostei e fui dar uma olhada ao catálogo do Big Fun. Tinham Black Bombay. Comprei dois pacotes e enrolei um joint a acompanhar o café. Depois meti-me no barco e rumei à Red Light – apetecia-me sexo ao vivo! Pelas ruas que ladeiam o canal a multidão, vagarosa, espreitava as raparigas nas montras. Acostei frente ao Jimmy's ouvindo o jazz melancólico que vinha da cave e entrei no Barbie. Estava quase vazio. No palco- aquário um casal iniciava um número de sexo: o homem, de mãos atadas, tinha uma corda à volta do pescoço que a mulher ia apertando com o crescendo da excitação – morreu enforcado no momento do orgasmo! Gostei da representação. Enrolei outro joint e saí. Cá fora a multidão continuava a sua passeata mironante e quase fui atropelado por um ciclista. Meti-me no barco e regressei a casa. A toda a velocidade.

Have big fun!
Have big fun!
Have big fun!

Budapeste (sempre a rock & rollar)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Cá vou eu no meu Trabi
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar

Charro aqui charro ali
Mais um vodka para atestar
Corro Peste corro Buda
Sempre a rock & rollar

As noites de Budapeste
São noites de rock & roll

Pelas caves da cidade
São só bandas a tocar
Pondo tudo em alvoroço
Tudo a rock & rollar

Mulheres lindas de morrer
Mini-saias a matar
Não tem fim o reboliço
Tudo a rock & rollar

As caves de Budapeste
São caves de rock & roll

Cá vou eu no meu Trabi
De bar em bar a aviar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar

Charro aqui charro ali
Mais um vodka para atestar
Sempre a abrir a noite toda
Sempre a rock & rollar

As noites de Budapeste
São noites de rock & roll

Barcelona (encontrei-a na plaza real)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Encontrei-a na Plaza Real
Pediu-me lume num ajuntamento
Transaccionavam-se objectos roubados
Quando surgiu a rusga da Guardia Civil
Puxou-me, fugimos por uma ruela da arcada
Puxou-me, fugimos por uma ruela da arcada

Encontrei-a na Plaza Real
Corremos as Ramblas entre copos e junkies
Divertimo-nos que nem doidos no Barrio Chino
O fim da noite foi na Gare Marítima
A ver o sol a nascer no Mediterrâneo

A ver o sol a nascer no Mediterrâneo

Marraquexe (pç. das moscas mortas)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Ainda corria o vento quente vindo do deserto.

No terreiro a que chamam Jamâa El Fna o acender dos lumes iniciou a montagem de dezenas de restaurantes ambulantes, com o cheiro adocicado das especiarias a invadir toda a praça.

Vindos das sombras da Medina, encantadores de serpentes, contadores de histórias, comentadores do Corão, malabaristas, trapezistas, músicos e toda a sorte de batoteiros atraíram uma multidão ociosa, que se arrastava indolente.

Em minutos Jamâa El Fna deixou de ser uma inóspita praça escaldante e empoeirada para passar a fervilhar de actividade, entre o fumo das cozinhas improvisadas, as luzes das lanternas acabadas de acender, o vozear da turba delirante, o batuque dos tambores ou a melopeia encantatória das flautas…

Era o momento de pôr à prova a destreza de mãos e surripiar umas carteiras!

BERLIM (morreu a nove)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Berlim, Berlim:
Morreu a nove.

Cenário:
Yorckstb…
Sucessão de viadutos de ferro
Enegrecidos pela ferrugem
Onde as velhas linhas para leste
Se equilibram, sobranceiras
Os carris retorcidos pelo matagal.

De quando em vez
O crepúsculo é rasgado pelo S-Bahn para Mariendorf
Fila de janelas iluminando prostitutas de couro e lingerie
Em carícias obscenas.

Hordas de guerreiros em látex vermelho
Silhuetas recortadas no lusco-fusco
Movimentam-se junto ao descampado.

Conan, o Bárbaro, montado no seu Camaro de 70
Cuspindo fogo estrepitosamente
Vem ver se está tudo bem com as suas pequenas.

Do imbiss do turco
Ouve-se a rádio anunciar que em Potsdamerplatz
O muro está a cair.

Que faço eu aqui
Com as mãos manchadas de sangue?

Berlim, Berlim...

PARIS (amour à mort)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Rue Oberkampf.
A cidade maquilha-se. De sombras.
De tráfego. A crescer no Boulevard.
Ensurdece a chambre de bonne.
Contra camião em descargas.
Apitos. Vozes iradas. Gritos.
Revolteiam. Fustigam. Folhas de Outono.

Place de la République.
Vibra o tráfego. Intenso. No ar.
Na esplanada. Na turba que passa.
Sentado. Descanso o olhar.
Perturbado. No cartaz da Clio.
Na beleza da rapariga.
Descubro. Olvidadas memórias.

Le Boulevard Voltaire
Évoque toute une littérature
De Lautréamont à Baudelaire.

La Place de Clichy
Nous rappelle Henry Miller
Et le Pont Mirabeau
La joie d’une chanson.
On voit Rimbaud
Sur les rives de la Seine
Se promener
Avec le fantôme d’un poème
Et là bas, à Saint-Germain
Boris Vian
Qui joue aux américains.
On voit Toulouse-Lautrec.
On voit Adèle Blanc-Sec.
Et on se trouve, comme par hasard
Dans un film de Godard…
Paris…
La ville des Rêves!

Quai de la Râpée.
Longínquo. O burburinho da cidade.
Desperta-me. Uma barcaça.
Do torpor em que mergulhara.
Aqui. Degolei a minha amada.
Untei-me. Com seu sangue quente.
Jurei. Amor eterno.

ISTAMBUL (um grito)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Fortes

Istambul, 2.45 da manhã.
O ininteligível vozear da turba multicolorida do Grande Bazar, na sua azáfama mercantil, e o insistente zumbido provocado pela amálgama de apitos e motores dos veículos a cruzarem a ponte Gálata, deram lugar à quietude. Da janela do quarto avista-se o porto e as milhentas luzes dos navios ancorados: a cidade mergulha em socalcos até ao Bósforo, com os minaretes das mesquitas a riscarem o céu. Está um calor infernal, abafado. Uma ligeira aragem transporta uma longínqua canção árabe, que entra pelo quarto na sua hipnótica languidez… De repente, um grito!

Istambul, 2.45 da manhã.
Omar está a dormir, um braço dependurado para fora do leito. Era o que ele, Mustafá, devia estar a fazer. Mas o maldito calor e a excitação em que se encontra impedem-no de adormecer. Até ao momento, tudo correra bem: já tinham a loira que o Emir Alif Keita encomendara e, a julgar pela amostra, ele ia ficar satisfeito. No entanto, não conseguia deixar de se preocupar com o dia seguinte, com a longa jornada de Istambul até ao Emirato. Mais uma vez, pôs-se a rever mentalmente o percurso, sobretudo as partes mais complicadas como a passagem para o Irão ou a tomada do barco em Linga. Mas, com a ajuda de Alá, havia de correr tudo bem. Reconfortado por este pensamento, Mustafá começa a ceder ao cansaço, os olhos a fecharem, a cabeça a pender…
De repente, um grito!

Istambul, 2.45 da manhã.
Não entendia como pudera acompanhar tão facilmente os dois turcos que conhecera no jardim da universidade. É verdade que se sentia particularmente excitada, depois de uma manhã de compras com todas aquelas mãos que aproveitavam para a afagar enquanto a ajudavam a provar uma peça de roupa ou um artefacto de joalharia, mas isso não explicava a leviandade com que os seguira. Tinha sido bom, é certo, mas devia ter-se precavido, avisado alguém – qualquer coisa menos ter ido como fora. Agora, aprisionada, sem saber o que querem dela ou o que lhe poderá acontecer, não há ninguém para dar pela sua falta. Mesmo que do hotel participem o seu desaparecimento, não deixou qualquer pista que permita encontrá-la. Está entregue a si própria. E o raio das cordas que estão tão bem apertadas…
De repente, um grito!
O seu grito.

Shambalah (o reino da luz)

Carlos Fortes

mutantes s21

Ficha técnica

Gravado em Maio e Junho de 1992 por José Fortes, Jorge Barata e António Cordeiro no Estúdio Angel II – Lisboa e por Rui Novais no Estúdio Angel I – Lisboa. Misturado em Junho e Julho de 1992 por José Fortes no Estúdio Angel II – Lisboa. Produção de Mão Morta. Ilustrações e bandas-desenhadas de Carlos Fortes & Zé, Humpty Dumpty, Pedro Maia, Carlos Corais, Aurélio Veloso, Paulo Trindade, Patrícia Gouveia, José Carlos Costa e Tiago Estrada. Capa de José Carlos Costa. Editado em Dezembro de 1992. Edição original Fungui.

  • Adolfo Luxúria Canibal – voz
  • Miguel Pedro – bateria, percussões, programações, baixo, guitarra, voz
  • Carlos Fortes – guitarra, piano, prato, voz
  • António Rafael – teclas, baixo, voz
  • José Pedro Moura – baixo
  • Sapo – guitarra, programações, voz
  • Mixa – voz

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