Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Em deus, por deus, com deus, viva deus Em deus, por deus, com deus, viva deus Vera fé e paixão Em deus, por deus, com deus, viva deus Deus, pátria, família, autoridade. Por toda a parte, as premissas fundacionais da nova ordem. E trabalho, claro. Toda a gente sabe que o trabalho liberta. E forma as pessoas de bem… O mito impõe-se à realidade. Obriga ao abdicar do pensamento e da razão, a ser crente. A acreditar na missão divina do herói. O herói mítico apresenta-se como a realidade transfiguradora do presente. Inculca a fé no líder, no povo, na nação. Encarna a vontade de deus. O herói mítico apronta a falsa memória do passado. Um passado representado miticamente, transformado numa mitologia de ódio. Um passado que mitifica a barbárie. Que glorifica a violência e a morte. O sacrifício do corpo. Que celebra a purificação através da violência. A primazia da morte sobre a vida. Um passado que se ergue como realidade do presente. O herói mítico anuncia o regresso do pai primordial heróico do passado. O comandante das hordas primitivas. O chefe de família. O chefe da nação. O pai que se admira, que submete, que castiga. O pai autoridade. O pai lei. O pai líder. O herói mítico exalta a determinação de dar a vida pelo pai, pelo líder, pela pátria. Promete a redenção pela destruição. A vontade da força. A eternidade da força vital corporizada no povo e na nação. No líder. Em deus.
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Corre, corre, corre, corre, corre. Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre!... Contra ti muita gente a gritar Uma imensa turba de gente Tensa com seu próprio vozear Num rancor mutante em acção Cego de raiva e pronto a matar A soltar a fera do medo Que nos faz a mente vomitar FICA AQUI JUNTO A NÓS IRMÃO Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre!... Contra ti essa verve sem par Uma verve de ódio nojenta Que não deixa ninguém respirar Porque és negro, judeu, cigano O islão que nos quer subjugar Essa ameaça sempre presente Que mantém a estupidez no ar JUNTO A NÓS FICAS BEM IRMÃO Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre!... Se vais embora, se sais daqui Ficamos pobres, órfãos de ti Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre!... Contra ti muita gente a gritar Uma imensa turba de gente Tensa com seu próprio vozear Num rancor mutante em acção Cego de raiva e pronto a matar A soltar a fera do medo Que nos faz a mente vomitar FICA AQUI JUNTO A NÓS IRMÃO Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre, corre, corre Corre!... Se vais embora, se sais daqui Ficamos pobres, órfãos de ti Como o medo do escuro, nas crianças, provoca arrepios e faz imaginar monstros e papões, também o medo do diferente e do desconhecido, o pavor ao cosmopolita, alimenta o ódio aos estrangeiros, aos imigrantes, e inventa que nos vêm roubar empregos, casas e cultura.
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
É proibido ter narrativas alternativas da nossa História É proibido pôr em destaque casos nefastos acontecidos É proibido dar valhacouto a refugiados e não nativos É proibido pôr em perigo a comunidade estabelecida É proibido ter porta aberta pra muçulmanos ou cristãos-novos É proibido fazer mesquitas e sinagogas pela cidade É proibido receber novas cosmopolitas vindas de fora É proibido atentar contra a identidade de todos nós É proibido fazer piadas sobre a polícia que nos vigia É proibido criar desordens disruptivas da autoridade É proibido desobedecer à hierarquia e ao Estado É proibido o jornalismo irresponsável e sem controlo É proibido comportamento incompatível com o decoro É proibido criar entraves ao crescimento da família É proibido pôr em dúvida a liderança do masculino É proibido alterar o bem e os géneros instituídos É proibido ser hospedeiro de propaganda subversiva É proibido atentar contra a identidade de todos nós É proibido! É proibido! É proibido! É proibido! É proibido!
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Rancor… Medo… Nojo… Ódio… Asco… Desdém… Raiva… Inveja… Por todo o lado só vejo ressentidos e ressabiados, sempre de mal com a vida e à procura de um bode expiatório. Nos outros, nos estrangeiros, na ciência, nos sábios, nos miseráveis, nos ricos, em todos os que não fazem parte dessa mesquinha massa amorfa que range os dentes de ódio e de inveja. E que se compraz em fazer mal, em achincalhar e acusar, em ver sofrer. Instigam o pior do ser humano, num rancor violento contra a vida, embalado pela estupidez mais profunda e tacanha. Até do pensar têm medo, denunciado como esforço elitista, inimigo da igualdade massificada. Hordas de bulhentos percorrem as ruas Procuram quem lhes dê motivo de bulha Um pobre migrante que sirva de tambor Uma tez escura lívida de terror E nesta normalidade ignóbil, de medo e violência, escoam-se, enfadonhos, os dias cinzentos da ordem nova.
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Numa idade avançada vive a mãe da Liberdade Acomodada num quarto duma casa de saúde Toda a gente discute os cuidados paliativos Que lhe são ministrados com dinheiros do Estado Mas ninguém questiona por onde anda a Liberdade Essa filha rebelde cujo rasto está perdido É assunto encerrado, é matéria proibida É segredo de Estado fechado a sete chaves A figura mítica de uma jovem e bela rapariga chamada Liberdade, sem outros constrangimentos que não os da sua vontade e desejos, é tida como uma falácia inventada pelos inimigos do povo. Diz-se que não se lhe conhece qualquer rasto porque tal rapariga nunca existiu. Que a única e verdadeira liberdade é a de uma anciã chamada Nação. Uma anciã cuidada e alimentada pelo Estado porque paralisada pelo peso da idade e da vontade colectiva. Que esta liberdade da Nação é que é a verdadeira liberdade, não os desejos ou as vontades individuais de uma qualquer jovem rapariga, meras manifestações de egoísmo que apenas promovem a divisão e ameaçam a coesão e a força do Estado. Que apenas visam desproteger a Nação e a vontade colectiva que ela encarna. A verdadeira liberdade implica o alinhamento colectivo e a subordinação individual ao Estado e ao líder, aos desígnios nacionais interpretados pelo líder. Implica a submissão à autoridade. A verdadeira liberdade é a da Nação, não a dos indivíduos, e essa só é garantida pela lealdade, pela disciplina e pela obediência ao Estado e ao líder. A bem da Nação. Numa idade avançada vive a mãe da Liberdade Acomodada num quarto duma casa de saúde Toda a gente discute os cuidados paliativos Que lhe são ministrados com dinheiros do Estado Mas ninguém questiona por onde anda a Liberdade Essa filha rebelde cujo rasto está perdido É assunto encerrado, é matéria proibida É segredo de Estado fechado a sete chaves
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
A nação é o povo. O líder encarna o povo. O líder é a voz do povo, a voz da nação. O líder diz que a terra é plana. A terra é plana. O líder diz que o aquecimento global é uma invenção. O aquecimento global é uma invenção marxista. O líder diz que o islão quer substituir o cristianismo. Quer substituir as nossas igrejas por mesquitas. Que o islão é inimigo do povo. Inimigo do povo. O líder diz que a ciência é elitista. A ciência é elitista. Que as elites não defendem os interesses do povo. O líder diz que a arte é propaganda marxista. Só a voz do povo é verdadeira. O líder é a voz do povo. Só o líder diz a verdade. Só a voz do líder é verdadeira. As outras são mentiras elitistas e cosmopolitas. Mentiras contra o povo. Contra a nação. Vozes do inimigo. A voz do inimigo. Vamos denunciar as falsidades do líder, pois ele não é a voz de ninguém, só dele mesmo. Não existe qualquer voz do povo, ele só representa o seu grupo de amigos e os seus interesses. O povo é uma massa heterogénea, disforme, com distintas vontades internas, antagónicas. Vontades de ricos e de pobres, de homens e de mulheres, de eruditos e de analfabetos. O povo é uma soma de minorias, uma mescla de dissemelhanças e diferentes sensibilidades. Reivindicar a voz do povo é pura ficção, é uma usurpação de poder para melhor nos reprimir. É a imposição de um pensamento único assente numa falsa legitimidade e dicotomia. Essa pretensa voz do povo não passa de um pretexto para a censura e a servidão de todos. A nação é o povo. O líder encarna o povo. O líder é a voz do povo, a voz da nação. O líder diz que a arte é propaganda marxista. Só a voz do povo é verdadeira. O líder é a voz do povo. Só o líder diz a verdade. Só a voz do líder é verdadeira. As outras são mentiras elitistas e cosmopolitas. Mentiras contra o povo. Contra a nação. Vozes do inimigo. A voz do inimigo.
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Lá vêm eles Cheios de soberba De rei na barriga A pregar a cartilha O povo é uno, indivisível Sem pluralismos nem minorias Cimenta corpo na maioria Encontra fala na voz do líder Líder, povo, nação Líder, povo, nação Colhe a verdade do seu destino No mito ancestre da pátria heróica Na sua alma medra a violência Do inconsciente ao ser liberto Líder, povo, nação Líder, povo, nação Lá vão eles Cheios de soberba De rei na barriga A pregar a cartilha Viva o líder! Viva o povo! Viva o líder! Viva a nação! Viva o líder! Viva o povo! Viva o líder! Viva a nação! Viva o líder! Viva o povo! Viva o líder! Viva a nação!
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
As notícias são claras A pátria está sob ataque Há sempre um inimigo E há sempre um basbaque Que veste a camisola Da honra perdida da nação A puxar as divisas bélicas Da guerra total sem remissão A histeria torna-se geral É impossível a ponderação Só há lugar para um pensar Qualquer outro é traição Avançam alegres os mancebos Com seus cantos militares Envoltos na festa dos Vivas Aos seus desígnios jugulares Para conservar as mentes alienadas Sem visão, num ardil, tudo vale: do fado ao futebol, à guerra ou à religião A histeria torna-se geral É impossível a ponderação Só há lugar para um pensar Qualquer outro é traição Avançam alegres os mancebos Com seus cantos militares Envoltos na festa dos Vivas Aos seus desígnios jugulares Para conservar as mentes alienadas Sem visão, num ardil, tudo vale: do fado ao futebol, à guerra ou à religião
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Nem bom-dia, boa-tarde, viva ou olá Em vez disso um seco viva la muerte! A lembrar que a vida é vale de lágrimas E que o reino dos céus só co’a morte virá Sonhamos todos com um mundo de prazer bom O fim da fome atroz que faz de nós um ser vil A liberdade enfim de se poder dizer não A vida é mar de dor, pois então viva la Muerte! Bem do fundo, do mais profundo de mim, ergue-se um leve motim Um ténue sussurro que o tempo engrossa e transforma em grito mudo A reclamar a vida que a tirana servidão impede de agarrar co’a mão Sobre a vida e o corpo tem a pátria alvará Ao serviço do líder, a bem da nação Remido pra trabalhar, sofrer e procriar Já que o reino dos céus só a morte o trará Sonhamos todos com um mundo de prazer bom O fim da fome atroz que faz de nós um ser vil A liberdade enfim de se poder dizer não A vida é mar de dor, pois então viva la Muerte! Bem do fundo, do mais profundo de mim, ergue-se um leve motim Um ténue sussurro que o tempo engrossa e transforma em grito mudo A reclamar a vida que a tirana servidão impede de agarrar co’a mão Ninguém nasceu pra ser servil e morrer Ninguém nasceu pra ser servil e morrer Ninguém nasceu pra ser servil e morrer Ninguém nasceu pra ser servil e morrer
Gravado em Setembro e Outubro de 2024 por Zé Nando Pimenta no Arda Recorders – Porto e misturado em Outubro e Novembro de 2024 por Zé Nando Pimenta no Arda Recorders – Porto. Masterizado em Novembro de 2024 por Miguel Pinheiro Marques no Arda Recorders – Porto. Pré-produção no Largo Recording Studio – Porto, com Ruca Lacerda. Produção de Mão Morta. Capa de Sónia Teixeira Pinto sobre fotografia de Daniel Blaufuks. Editado em Janeiro de 2025. Edição original Rastilho.
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