Miguel Pedro
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
O mundo não é mais um lugar seguro! O mundo deixou de ser um lugar seguro quando os oceanos invadiram a terra com as suas ondas viscosas e empurraram toda a gente para o alto das montanhas. As montanhas, com os picos envoltos numa permanente névoa de gazes tóxicos, não são um lugar agradável. As pessoas, para se protegerem, inventaram uns rígidos fatos herméticos, que lhes impedem o toque, o beijo e o amor. Assim, atomizados, espalhamo-nos por pequenos búnqueres escavados nas encostas, onde aguardamos, na solidão dos favos, que algo aconteça, que uma qualquer civilização extraterrestre nos venha salvar da extinção. Mas, até agora, nada aconteceu, nenhum sinal de uma presença cósmica foi detectado. Pelo que continuamos, expectantes, debruçados sobre os monitores dos nossos aparelhos electrónicos à cata do mais ínfimo movimento por entre o labirinto de planetas, estrelas e galáxias que formam a infinitude do universo, enquanto, pela parede envidraçada dos búnqueres, vamos vigiando o ondular mucoso das águas que, dia após dia, paulatinamente se aproximam. Há um frio profundo, primordial, que me gela o corpo, um vácuo húmido que me deixa sensível à presença da matéria escura e às mais delicadas vibrações de energia. Ao medo. O mundo não é mais um lugar seguro!
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Sinto uma estranha presença atrás de mim
Espreito por cima do ombro mas não vejo nada
No entanto, sinto nitidamente um respirar junto ao meu pescoço
Volto-me para trás mas não está lá ninguém.
Está tanto frio!
Tenho a certeza que há alguém comigo aqui no búnquer
Sinto a sua presença invisível de uma forma bem palpável
É algo mais do que um espectro ou do que uma sombra
É uma espécie de ser físico que se não ilumina.
Está tanto frio!
Arrgh! Uuuh! Ught! Matéria… Cof! Aaaahh! Urgt! Arrrrght! Frio! Uuuh! Aaaahh! Ught! Espectro… Brrr! Urght! Arrrrght! Invisível… Uuuuh! Aaaahh! Arrgh! Urgt! Medo! Uuuuh! Arrrrght! Aaaahh! Brrr! Tanto frio! Arrrght!
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Quem és tu?
Que fazes aqui?
Que queres de mim?
Quem és tu?
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Oxalá, oxalá
O futuro nos traga a sorte
Oxalá, oxalá
Duma morte indolor e rápida pra não sentirmos nada
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Passo o dia a olhar o sol
Ofuscado pela ânsia da salvação
No temor da chegada desse momento
Em que tudo será grito
O coração bate-me ainda
Mas não posso chamar vida
A esta inércia ante o punhal de dor
Que me aponta o destino
A terra não é mais um lar
Apenas o lugar de um desconforto crescente
E de uma solidão cada vez mais cruel
E sem fim à vista
Continuo pois a olhar o sol
A ver a dança das manchas negras
Que se formam nas retinas prenhas de luz
E desisto de pensar
As histórias do passado
Surgem nítidas, em catadupa
Trazendo com elas a dolorosa saudade
Do tanto que ficou por fazer
Olho em volta, com falta de ar
A dar folga ao aperto que me assola
Mas as paredes vidradas do búnquer
Reflectem-me a agonia
Queria tanto morrer em paz
Entre os braços da minha amada
Mas dela apenas restam memórias
E o vazio da ausência
Continuo pois a olhar o sol
A ver a dança das manchas negras
Que se formam nas retinas prenhas de luz
E desisto de sentir
Não quero mais sofrer!
Não quero mais sofrer!
Não quero mais sofrer!
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Deflagram clarões de luz intensa imensa
No longe da densa treva austral astral
Estoiros de cor na névoa azul, azul
Vermelhos carmins de sangue querubim
Estrelas laranjas no fulgor da dor
Disparos tracejam sem parar o ar
O céu fica cheio de aviões espiões
Bizarras mecânicas de morte alada
Deixem-me sair daqui
Já soam alarmes de contacto impacto
E uivam as gentes crentes no resgate
Entregues ao ímpio praguejar lunar
E instala-se o medo aos obscuros seres
Deixem-me sair daqui
Disparos tracejam sem parar o ar
O céu fica cheio de aviões espiões
Bizarras mecânicas de morte alada
E instala-se o medo aos obscuros seres
Deixem-me sair daqui
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Estranho! Não era disto que estávamos à espera… Desta invasão bélica que nos apanhou desprevenidos e indefesos. Na aflição de sermos salvos nem concebemos a possibilidade de uma civilização extraterrestre hostil. Agora… Agora resta-me sair do búnquer e… render-me. Ser feito prisioneiro! Ou isso ou… esperar pela subida das águas, cada vez mais densas e peganhentas.
Quero sair, mas algo me impede! Sinto outra vez a meu lado a presença do ser invisível. O seu respirar… E um frio profundo a gelar-me o corpo. É uma espécie de matéria escura que se não ilumina, e que puxa por mim… a impedir-me os movimentos. Quero sair, mas não consigo!
Pela parede envidraçada do búnquer acompanho o deambular dos seres extraterrestres – insectos gigantes de enorme e medonha cabeça! Estão a recolher e a alinhar toda a gente. Que querem de nós? Encaminham as pessoas pela encosta, filas de autómatos desengonçados nos seus fatos herméticos em direcção às névoas tóxicas do cume. Não tarda virão aqui…
De repente, como se o ser invisível a meu lado me iluminasse o cérebro, sei o que querem de nós… Vêm pelo orgone! Os búnqueres funcionam como enormes acumuladores de orgone e é essa energia sexual acumulada que os extraterrestres vêm buscar. Mas como a irão extrair das pessoas?
Sinto o corpo cada vez mais gelado. Já sem forças…
Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro
Acordo com o doce rosto da minha amada a olhar para mim. Ao vê-la, sinto uma tão grande felicidade a percorrer-me o corpo, que fico trémulo. Incrédulo, seguro-lhe a cabeça entre as mãos. Depois, num acesso de ternura, puxo-a para mim, para a abraçar. Quero apertá-la e senti-la, sentir-lhe o corpo, o calor do seu corpo quente, quero cheirar-lhe os cabelos que se entrelaçam na minha cara, pegar nas suas mãos…
Há tanto tempo! Digo-lhe:
– Há tanto tempo! Deixa-me abraçar-te, sentir-te, saborear a felicidade deste momento! Eu podia ficar assim, aqui contigo, para sempre…
Ela junta o seu rosto ao meu. Beija-me levemente os lábios. Eu beijo-lhe os lábios, a pele macia do rosto, o pescoço. Quero apertá-la mais ainda, fundi-la em mim. Julguei que nunca mais a veria, que nunca mais lhe iria tocar… Solto um suspiro profundo, de alívio, de nirvana – o meu amor voltou!
– Tive tantas saudades tuas! – Digo-lhe – Nem sei como consegui sobreviver… Mas não interessa. O que importa agora é o momento presente, a felicidade de estar aqui, de te ter entre os braços, de te apertar e cheirar e beijar. De te amar!
E suspiro uma vez mais, sem palavras, sem desejos, apenas embalado pelo intenso bem-estar que me toma e que não quero desperdiçar. Mesmo a morte me parece já algo de agradável, de delicioso. Morrer nos seus braços, bafejado pelo seu amor…
Poderá haver maior ventura?
Os seus longos beijos humentes excitam-me. Acaricio-lhe a pele, as costas, os seios…
Quero mordê-la, lambê-la, tocar-lhe!... Quase sem darmos conta desfazemo-nos da roupa que nos cobre o corpo e mergulhamos na sua exploração, a língua servindo de guia pelos acres sabores das suas partes mais íntimas, o prazer como bandeira
redentora.
– Meu amor!... – Digo-lhe.
– Penetra-me! – Diz-me ela, com a voz rouca de desejo – Trespassa-me com força!
E puxa-me o sexo para a sua vagina húmida, calorosamente húmida e sôfrega. Mal a penetro, sinto os músculos vaginais a apertarem-me o membro, impedindo-lhe os movimentos. E a glande a ser sugada por contracções desconhecidas, como de uma garganta sufocada. Não me lembro de antes alguma vez isto ter acontecido, mas é demasiado bom. Sinto o sugar dos fluídos num crescendo incontrolável e o sexo, desmedidamente inflamado, a rugir pelo rebentamento. E quando finalmente se dá o orgasmo é como um grito de libertação, uma explosão de todas as tensões acumuladas que me deixa prostrado e inane de forças e quereres.
Semi-abro os olhos para sorrir à minha amada e ver-lhe a beleza do rosto afogueado.
Mas, numa desfragmentação repentina, ela surge-me com a forma de um
extraterrestre, como um insecto gigante de enorme e medonha cabeça. Dou um salto para trás, surpreendido e assustado.
– Que é isto? – Digo – Quem és tu?
O insecto agarra-me e segura-me com as suas longas patas dianteiras. Depois aproxima as mandíbulas do meu corpo e recolhe as poucas gotas de esperma que ainda luzem no prepúcio. Apesar da minha resistência abocanha-me o sexo e chupa-o.
Tento fugir mas as suas patas seguram-me firmemente. Dou-lhe murros na cabeça
enquanto grito:
– Larga! Deixa-me! Que nojo! Burc!
Sinto-me verdadeiramente enojado com aquele bicho de horrível cabeça mergulhada entre as minhas pernas. Vulnerável na minha nudez, quero sair dali, fugir, mas não consigo. O insecto ergue-me no ar. Passa-me a longa e asquerosa língua por todo o corpo, penetra-me o ânus, as narinas, a boca… Estou cada vez mais enojado. Sinto as entranhas a revolverem-se dentro de mim e, num súbito espasmo, solto um jacto de vómito sobre o monstro. Este, surpreso, engole todo aquele líquido fétido com voraz apetite e morde-me o ventre, como que insatisfeito, na busca de mais alimento.
O sangue começa a correr-me pela pele, pernas abaixo. O monstro, encantado, lambe-o e morde-me mais, no peito, nos braços, nas costas… É estranho, mas não sinto dores! É como se estivesse imune à dor física, apenas vejo as mandíbulas a arrancarem-me pedaços de carne e o sangue a correr e a borbulhar em golfejos
regulares. Já nem forças tenho para resistir. De repente, como se estivesse fora de mim, a olhar para tudo a partir do exterior, observo o insecto a decepar-me a cabeça e esta a rolar pelo chão como uma bola, até desaparecer de vista.
Acho que foi o meu fim, que foi assim que morri, mas não tenho a certeza… Pareceu-me ainda ouvir a minha amada dizer:
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
Isto é real? O que é real?
Já chega de brincadeira!
Quero ir para casa… Não quero mais brincadeira!
Onde está o real? Onde está a minha casa?
A solidão deixa-me confuso…
Meu amor, na tua ausência nada tem interesse…
Mas agora quero saber o que é real? Encontrar a minha casa…
Quero ir para casa! Já chega de brincadeira…
Quero ir para casa!...
Na tua ausência, meu amor, o mundo mudou muito…
Onde estás tu? Sinto tanto a tua falta…
Nem sei se o que acontece é real!...
Eu vi-te a seres levada pelo mar… Foi real?
O que é real? Eu sou real? Tu és real?
Ou é tudo uma brincadeira?
Parem com isto! Chega de brincadeira…
Quero ir para casa, para a minha casa!...
Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael
És tu, este ser que vela por mim e que se não ilumina?
Sinto tanto frio, meu amor…
Gravado em Abril e Maio de 2019 por Ruca Lacerda no Largo Recording Studio – Porto, por Miguel Pedro no My Own Studio – Braga e por Vasco Vaz no Estúdio Vulcano – Almada e misturado em Junho e Julho de 2019 por Ruca Lacerda no Largo Recording Studio – Porto. Masterizado em Agosto de 2019 por Frederico Cristiano no Mechanical Heart Mastering Sessions – Braga. Produção de Miguel Pedro e António Rafael. Capa de Sónia Teixeira Pinto sobre desenho de José Carlos Costa. Editado em Setembro de 2019. Edição original Rastilho.
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