Mão
Morta

nós somos aqueles contra quem os nossos pais nos avisaram

Nós somos aqueles contra quem os nossos pais nos avisaram

Abertura

Telmo Marques

Humano

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Um casal de pegas rabudas faz o ninho em frente à minha janela – todas as manhãs sou acordado pelo seu intenso grasnar e fico a vê-las trazer pauzinhos com o bico – acho que é um sinal de boas-vindas ter dois passaritos assim expostos na sua intimidade – é como se me dissessem “eis um bom lugar para começar tudo de novo. fazemos-te confiança…” – o marroquino do bar da esquina recebe-me sempre com um rasgado sorriso e um caloroso aperto de mão – de vez em quando oferece-me mesmo as bebidas – está outra vez a chover – chove muitas vezes – uma chuva miudinha, que mal se sente e que não impede ninguém de sair de casa – nestas alturas o céu fica pesado, cor de chumbo, a tocar os telhados – é quando eu mais gosto de ir à deriva, levado pelas sombras que aqui e ali afloram em determinadas ruas – no outro dia encontrei…
Why can’t you just get physical like a human?
Não foi bem uma vista aérea, foi uma coisa estranha, como se estivesse em cima…
Why can’t you just get physical like a human?
Uma espécie de aldeia em miniatura, que eu percorria por dentro estando fora…
Why can’t you just get physical like a human?
É como se olhasse para as minhas botas e as visse dentro dos meus pés, apesar de calçadas…
Why can’t you just get physical like a human?
Era como se eu fosse maior do que o que sou – como se estivesse todo dentro de algo mais pequeno do que eu – dentro e fora em simultâneo, porque ao mesmo tempo que cabia lá dentro era maior do que aquilo em que cabia – uma espécie de ilusão física – de anulação do volume – ou de inibição do impossível – uma abstracção indizível…
Why can’t why can’t why can’t you just get physical like a human?

Well the buyer comes look more more like a junkie can’t drink can’t get it up his lips falls down

Facas em Sangue

Adolfo Luxúria Canibal / Zé dos Eclipses

Vivia na temperatura tépida dos lençóis
Aquele que dava pelo estranho nome
De Amor. Às vezes, soltava-se
E percorria pela mão
Dos adolescentes ruas desertas, sombras
Escuras e conspiradoras. – Soltou-se
O Amor – alguém gritava.

E vinha o vermelho e invadia
O vermelho
E assanhavam-se os gatos conscientes
Da invasão da sua noite
Solitária. Depois apagava-se
A última luz da última janela e desaparecia
O Amor na tepidez dos lençóis. Ficava

A lua, ficava o luar
Azul a reflectir perigosamente
Nas lâminas das facas ensanguentadas
Dos adolescentes...

Pássaros a Esvoaçar

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Desempregados famélicos deambulam pela cidade
À procura de um naco de pão, à procura de uma oportunidade
Bandos de fantasmas esqueléticos que se juntam ao fim da tarde
Como pássaros a esvoaçar à volta de cães a ladrar

Ei rapariga, porque arrastas os pés pela calçada?
Há um assassino que te quer como prémio de consolação
O dinheiro paga o teu silêncio e leva-te para outra dimensão
Lá onde os dias não custam a passar e as noites são de sedução

Como pássaros a esvoaçar à volta de cães a ladrar
Bandos de fantasmas esqueléticos juntam-se ao fim da tarde
À procura de um naco de pão, à procura de uma oportunidade
Ainda crentes das doces palavras que lhes serve a caridade

Tu disseste

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Tu disseste “quero saborear o infinito”
Eu disse “a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis”
Tu disseste “sentir a aragem que balança os dependurados”
Eu disse “é o medo o que nos vem acariciar”
Tu disseste “eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpor o limiar da porta”
Eu disse “acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala”
Tu disseste “um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir”
Eu disse “...”
Eu disse “o que é que isso interessa?”
Tu disseste “...nada”
Tu disseste “agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca”
Eu disse “eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede”
Tu disseste “e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?”
Eu disse “não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada”
Tu disseste “e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês”
Eu disse “o que é que isso interessa?”
Tu disseste “...nada”

Tiago Capitão

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Esta é a história de Tiago Capitão que foi maoísta no tempo da revolução e negreiro quando passou a confusão. O seu poder subterrâneo edificou-o ao acaso das férias pelo Mediterrâneo, de Gibraltar a Portofino, onde encantava com seu ar ladino os turistas mais ávidos de agitação. Quando soprava o vento Suão organizava escabrosos Carnavais, onde virgens de enigmáticas origens – manancial de carne fresca que desembarcava em misteriosos barcos de pesca – eram sacrificadas ao cruel manejo dos bacantes inflamados de desejo. E nas noites de lua cheia comandava pretendidas epopeias por vivendas que sabia desocupadas e que eram então arrombadas, profanadas e mesmo incendiadas, numa volúpia de destruição que lhe ia firmando a reputação. Criou assim uma horda de veraneantes unidos por um mesmo brado viciante:
“Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó Capitão!”

Mas tudo tem um fim. E o fim chegou.

Apesar de Tiago Capitão, incutido o gosto pela devassidão e assegurado um timoneiro para a sua substituição, ter o cuidado de sempre mudar de localidade e assim despistar a sua identidade, o seu nome acabou nos registos da polícia, que só esperava uma ocorrência propícia para lhe deitar a mão. E veio o fatídico serão em que Tiago Capitão foi encurralado como um cão danado e, antes mesmo de poder esboçar um gesto de protesto, condenado por uma saraivada de balas a uma morte sem galas. Mas o seu exemplo manteve-se presente e não deixou indiferente quem com ele aprendeu a amar o Verão com a lascívia da transgressão. E ainda hoje, por noites de lua cheia, em lugarejos perdidos da costa mediterrânica, de Gibraltar a Portofino, se podem ouvir os ecos malditos da canção de Tiago Capitão:
“Vamos em frente, olho por olho, dente por dente, ó Capitão!”
(oiçam a canção)
(a canção do capitão)

Estilo

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

na lapela uma agulha adornada c’um brilhante
na orelha uma argola de pirata petulante
o andar afectado de quem anda nas alturas
espreitando do bolso um folheto com torturas
ou então um volume de cozinha libertária
que ninguém percebia ao fazer a culinária

todo o dia a jogar a um jogo de charadas
entre copos de absinto e mistelas inaladas
recitamos poemas em delírio fonético
inventamos dadá em registo frenético
e depois já cansados vamos todos para a cama
numa orgia colectiva que não vinha no programa

é preciso é estilo! não cansamos de dizer
num verniz de desdém que nos dá muito prazer
assumindo o deboche cada vez mais descarado
insurrectos em graça adorando o acto ousado
somos fãs da desbunda do deleite permanente
e assim passa o tempo e com ele nova gente

é preciso é estilo em delírio fonético
é preciso é estilo adorando o acto ousado
é preciso é estilo de pirata petulante
é preciso é estilo vamos todos para a cama
é preciso é estilo em deleite permanente
é preciso é estilo de quem anda nas alturas

Aum

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro, Mão Morta

Quem vem do cemitério pela rua do antigo teatro, chegando ao largo onde estão as ruínas da igreja dos Jesuítas, vira à direita, para a rua da estação do caminho-de-ferro, e segue sempre em frente, acompanhando a linha do comboio, até chegar a um barracão a que chamam museu e onde guardam as velhas locomotivas a vapor e as ferrugentas carruagens de bancos de madeira. Aí, mete pela rua onde não passam carros até chegar a um quiosque, daqueles redondos, frente ao qual, do lado esquerdo da rua, existe um cafezinho com esplanada onde ainda servem café de saco. Entra pelo café e sai pela outra porta, que dá para a rua do jardim. Contorna depois o lago dos cisnes, em direcção ao cruzamento com semáforos, e mete pela avenida do cinema, no sentido do novo bairro administrativo, até chegar a um arranha-céus acabado de construir. Aí, vira à direita, para a rua que passa pelas piscinas recentemente inauguradas e, chegando ao centro comercial em construção, aquele que dizem vir a ser o maior da Europa, com não sei quantas lojas e não sei quantos andares, enfia pela rua que ladeia os terrenos destinados ao futuro complexo desportivo no fim da qual encontra a maternidade.

O tempo não espera por mim! O tempo não espera por mim!

Destilo Ódio

Adolfo Luxúria Canibal, Zé dos Eclipses / Mão Morta

Destilo ódio! Odeio o teu esqueleto ciumento
E os seus ornamentos de suicida
Destilo ódio!
Odeio as tuas tesouras perversas
Destilo ódio!
Odeio a colecção de animais embalsamados
Que escondes nas gavetas do teu quarto
Destilo ódio!
Odeio essas peçonhentas mãos de bruxa
E a obscenidade das tuas unhas
Destilo ódio!
Odeio-te amuleto maligno
Que me intoxicas os sonhos com esse hálito pérfido
Que até o metal corrompe
Destilo ódio!
Odeio-te barca sonâmbula
Destilo ódio!
Odeio-te farol esclerosado
Onde a luz cresce mutilada
Destilo ódio!
Odeio-te morte mansa
Que forras de veludo as paredes desta alcova
Destilo ódio!
Odeio-te maldita celerada

Berlim (Morreu a Nove)

Adolfo Luxúria Canibal / Carlos Forteso

Berlim, Berlim:
Morreu a nove.

Cenário:
Yorckstb…
Sucessão de viadutos de ferro
Enegrecidos pela ferrugem
Onde as velhas linhas para leste
Se equilibram, sobranceiras
Os carris retorcidos pelo matagal.

De quando em vez
O crepúsculo é rasgado pelo S-Bahn para Mariendorf
Fila de janelas iluminando prostitutas de couro e lingerie
Em carícias obscenas.

Hordas de guerreiros em látex vermelho
Silhuetas recortadas no lusco-fusco
Movimentam-se junto ao descampado.

Conan, o Bárbaro, montado no seu Camaro de 70
Cuspindo fogo estrepitosamente
Vem ver se está tudo bem com as suas pequenas.

Do imbiss do turco
Ouve-se a rádio anunciar que em Potsdamerplatz
O muro está a cair.

Que faço eu aqui
Com as mãos manchadas de sangue?

Berlim, Berlim...

Penso que Penso

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Caminho em silêncio
Distraído por um pensar
Que me turba o andar
Penso que penso
E fico a ouvir-me a pensar
Que penso que penso
Este pensamento
Torna-se um tormento
Penso que penso
Que penso que penso
Sempre o mesmo a dobrar
Como vozes a segredar
Penso que penso
Que penso que penso
Que ainda vou flipar
Flipar

ESTOU FARTO DE MIM!

Já não posso mais andar
Com tanta voz a murmurar
Levado pelo vento
Penso que penso
Que penso que penso
Que penso que penso
E se penso em parar É mais um pensamento
Que me fica a ecoar
Outra voz a segredar
Outra voz a murmurar
Murmurar
Murmurar… murmurar… murmurar…

ESTOU FARTO DE MIM!

Hipótese do Suicídio

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Como posso eu dizer que te amo se não encontro amor em mim
Apenas mágoa, de tanto calar a raiva e o nojo da minha condição

Enxovalhado no trabalho, maltratado na doença,
Humilhado no salário, aviltado na dignidade,
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar

Nem sei o que me prende aqui, sufocado em tamanha opressão
A não ser a tola esperança de que melhores dias virão

Enxovalhado no trabalho, maltratado na doença,
Humilhado no salário, aviltado na dignidade,
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar
Resta pouco para gostar de mim e ainda menos para amar

A hipótese do suicídio liberta-nos para a vida
A hipótese do suicídio liberta-nos para a vida

Porque se viver é arrastar este morrer prefiro então antes a morte
É que assim resta pouco para gostar de mim e ainda menos para gostar de ti

Vamos Fugir

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Tenho os passos vigiados no labirinto das notícias. Das estatísticas não consigo escapar. Quimeras mercantis e mexericos mediáticos invadem-me a solidão. A realidade não existe. A fuga é para lado nenhum.

Tive uma ideia, tive uma ideia – vamos fugir!
Tive uma ideia, tive uma ideia – foge comigo!

A informação está em toda a parte. Mil olhos nos vigiam. Ninguém sabe quem dá as ordens. Mas elas cumprem-se. A teelvisão transmite-nos a realidade, transmite-nos as ordens. Eu cumpro. A única fuga é a loucura.

Tive uma ideia, tive uma ideia – vamos fugir!
Tive uma ideia, tive uma ideia – foge comigo!

Tenho um grilo falante um grilo falante
Um pateta desastrado desastrado
Um cavaleiro andante cavaleiro andante
Um pardal alucinado alucinado
Tenho uma top-model uma top-model
Um vingador implacável implacável
Tenho um prémio Nobel tenho um prémio Nobel
Uma amante insaciável insaciável
Tenho um serial killer tenho um serial killer
Tenho Deus disfarçado Deus disfarçado
Sou o maior dealer sou o maior dealer
Que se encontra no mercado

1º de Novembro

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Um traço um berço
Dois destinos que se cruzam na lonjura da distância
Erva fálica pelo caminho

Distúrbios subúrbios
Automóveis ferrugentos desenhando o horizonte
Os paralelos asfixiam a alma

Solidão saudade
Romagens romaria aos queridos defuntos
Carcaças abandonadas ao passado

Lágrimas fábricas
Tempo invernoso sublinhando a ausência
A música ouve-se triste

Solidão! Saudade! Romagens! Romarias!
Solidão! Saudade! Queridos! Defuntos!

nós somos aqueles contra quem os nossos pais nos avisaram

Ficha técnica

Gravado ao vivo em 15 de Abril de 2016 por Francisco Rodrigues e Mário XL na Sala Principal do Theatro Circo – Braga e misturado em Setembro e Outubro de 2016 por Márcio Décio no Bug Studio – Braga. Masterizado em Outubro de 2016 por Frederico Cristiano no Mechanical Heart Mastering Sessions – Braga. Capa de Sónia Teixeira Pinto sobre fotografia de Paulo Nogueira. Editado em Fevereiro de 2017. Edição original Theatro Circo.

  • Adolfo Luxúria Canibal – voz
  • Miguel Pedro – bateria, programações, voz
  • António Rafael – guitarra, teclas, voz
  • Vasco Vaz – guitarra, voz
  • Sapo – guitarra
  • Joana Longobardi – baixo

Remix Ensemble:

  • José Pereira – violino
  • Afonso Fesch – violino
  • Trevor McTait – viola
  • Oliver Parr – violoncelo
  • António A. Aguiar – contrabaixo, baixo
  • Stephanie Wagner – flauta
  • Francesco Sammassimo – oboé
  • Victor J. Pereira – clarinete
  • Roberto Erculiani – fagote
  • Nuno Vaz – trompa
  • Ales Klancar – trompete
  • Ricardo Pereira – trombone
  • Mário Teixeira – percussão
  • Manuel Campos – percussão
  • Jonathan Ayerst – piano
  • Pedro Neves – direcção musical
  • Telmo Marques – orquestração e arranjos

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