Mão
Morta

primavera de destroços

Primavera de destroços

Cão da Morte

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

No calor da febre que me alaga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte.
Já desfila trémulo o cortejo do passado
Que me deixa quedo, surdo e mudo de pesar
Vejo o meu desgosto na beleza do teu rosto
Sinto o teu desprezo como um dardo envenenado.

Morro! Morro! No altar de ti.

Sopra forte o vento na fogueira que arde em mim.
Sinto a selva agreste nos batuques do meu peito.
No cruel caminho em que me lança o desespero
Sinto o gelo quente do inferno do meu fim.
No calor da febre que me alaga toda a fronte
Sinto o gume frio da navalha até ao osso
Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço
E a luz do sol a fraquejar no horizonte.

Morro! Morro! No altar de ti.

Sinto o cão da morte a bafejar no meu pescoço...
Morro! Morro! No altar de ti.

Arrastando o Seu Cadáver

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

É demencial Não há palavras que consigam dizer o horror
Vi um pobre homem agarrado ao que restava da sua mulher
Errando pela baixa
Os olhos fixos num horizonte perdido
Sem uma palavra Sem um som
Arrastando a carcaça desfigurada
Por entre o trânsito do fim da tarde
Passei sem conseguir dizer nada
Ninguém dizia nada O silêncio
Acompanhava o olhar vazio A dor
A vaguear por entre as ruínas e o trânsito do fim da tarde
As pessoas apressavam-se por causa do cair da noite
E o pobre homem seguia um destino sem rumo
Arrastando o seu cadáver
E o pobre homem seguia um destino sem rumo
Arrastando o seu cadáver
Ninguém dizia nada O silêncio
Acompanhava o olhar vazio A dor

Tu Disseste

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Tu disseste “quero saborear o infinito”
Eu disse “a frescura das maçãs matinais revela-nos segredos insondáveis”
Tu disseste “sentir a aragem que balança os dependurados”
Eu disse “é o medo o que nos vem acariciar”
Tu disseste “eu também já tive medo. muito medo. recusava-me a abrir a janela, a transpor o limiar da porta”
Eu disse “acabamos a gostar do medo, do arrepio que nos suspende a fala”
Tu disseste “um dia fiquei sem nada. um mundo inteiro por descobrir”
Eu disse “...”
Eu disse “o que é que isso interessa?”
Tu disseste “...nada”
Tu disseste “agora procuro o desígnio da vida. às vezes penso encontrá-lo num bater de asas, num murmúrio trazido pelo vento, no piscar de um néon. escrevo páginas e páginas a tentar formalizá-lo. depois queimo tudo e prossigo a minha busca” Eu disse “eu não faço nada. fico horas a olhar para uma mancha na parede”
Tu disseste “e nunca sentiste a mancha a alastrar, as suas formas num palpitar quase imperceptível?”
Eu disse “não. a mancha continua no mesmo sítio, eu continuo a olhar para ela e não se passa nada”
Tu disseste “e no entanto a mancha alastra e toma conta de ti. liberta-te do corpo. tu é que não vês”
Eu disse “o que é que isso interessa?”
Tu disseste “...nada”

Penso Que Penso

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Caminho em silêncio
Distraído por um pensar
Que me turba o andar
Penso que penso
E fico a ouvir-me a pensar
Que penso que penso
Este pensamento
Torna-se um tormento
Penso que penso
Que penso que penso
Sempre o mesmo a dobrar
Como vozes a segredar
Penso que penso
Que penso que penso
Que ainda vou flipar
Flipar

ESTOU FARTO DE MIM!

Já não posso mais andar
Com tanta voz a murmurar
Levado pelo vento
Penso que penso
Que penso que penso
Que penso que penso
E se penso em parar
É mais um pensamento
Que me fica a ecoar
Outra voz a segredar
Outra voz a murmurar
Murmurar
Murmurar… murmurar… murmurar…

ESTOU FARTO DE MIM!

GIN TONIC

Carlos Corais / Miguel Pedro

Hello Tonic!
Que bom Gin!...
Gin, Gin…
Um pé alto cheio de mim.

Um gesto de arauto,
A lua cheia,
Ou não, enfim…

A teia a crescer, crescer
Um bandolim a solar
Uma qualquer
Sereia a tilintar.

Tlim, tlim, tlim…

Acordo enrolado
Num pudim
Em taça de cristal,
Tlim!...

O Jardim

Adolfo Luxúria Canibal / António Rafael

Há tanto tempo que não me ocupo do jardim
A última vez estava frondoso
A buganvília a tingir-se de vermelho Trepando
O perfume inebriante
E as festas ao cair da tarde
Parece que foram há séculos Noutra encarnação
Os meus amigos traziam as bebidas
E a jovialidade
O jardim enchia-se de gente De beijos
Pelos cantos Sôfregos de desejo
Inventávamos planos de rebelião Sonhos de transmutação
Passávamos horas a inventar Entre duas carícias
Surgiam ideias puras e inocentes
Como a nossa vontade de tudo abarcar
Era um frenesim constante
Faz-me pena agora olhar para ele
Para as suas sebes abandonadas De ramos
Retorcidos jaz tombada a grande epícea
E uma enorme cratera
Substitui os belos canteiros de outrora
Há tanto tempo que não me ocupo do jardim

Humano

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Um casal de pegas rabudas faz o ninho em frente à minha janela – todas as manhãs sou acordado pelo seu intenso grasnar e fico a vê-las trazer pauzinhos com o bico – acho que é um sinal de boas-vindas ter dois passaritos assim expostos na sua intimidade – é como se me dissessem “eis um bom lugar para começar tudo de novo. fazemos-te confiança…” – o marroquino do bar da esquina recebe-me sempre com um rasgado sorriso e um caloroso aperto de mão – de vez em quando oferece-me mesmo as bebidas – está outra vez a chover – chove muitas vezes – uma chuva miudinha, que mal se sente e que não impede ninguém de sair de casa – nestas alturas o céu fica pesado, cor de chumbo, a tocar os telhados – é quando eu mais gosto de ir à deriva, levado pelas sombras que aqui e ali afloram em determinadas ruas – no outro dia encontrei…
Why can’t you just get physical like a human?
Não foi bem uma vista aérea, foi uma coisa estranha, como se estivesse em cima…
Why can’t you just get physical like a human?
Uma espécie de aldeia em miniatura, que eu percorria por dentro estando fora…
Why can’t you just get physical like a human?
É como se olhasse para as minhas botas e as visse dentro dos meus pés, apesar de calçadas…
Why can’t you just get physical like a human?
Era como se eu fosse maior do que o que sou – como se estivesse todo dentro de algo mais pequeno do que eu – dentro e fora em simultâneo, porque ao mesmo tempo que cabia lá dentro era maior do que aquilo em que cabia – uma espécie de ilusão física – de anulação do volume – ou de inibição do impossível – uma abstracção indizível…
Why can’t why can’t why can’t you just get physical like a human?

Well the buyer comes look more more like a junkie can’t drink can’t get it up his lips falls down

Nada a Perder

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

Há uma enorme festa nas ruas
De vez em quando aparece a polícia e tenta prender
Matar toda a gente
Sobretudo quando nos aventuramos pelos bairros residenciais
Onde pessoas aterrorizadas fingem que tudo vai bem
Encarceradas frente à televisão
Quando partimos uma montra ou saqueamos uma loja
Quando atacamos colunas de assalariados
O truque é ter um bom veículo para a fuga
Recolher rapidamente ao nosso território Às ruínas
E partilhar os despojos
Há sempre uma garrafa para beber
E uma mulher para amar
Quando nada se tem a perder

O Combate

Adolfo Luxúria Canibal / Miguel Pedro

A multidão sedenta de sangue
Ouço-lhe os gritos A demência
No desejo de aliviar a tensão
Acotovelar-se para ver dois boxeurs a socar-se
Embriagados pelo clamor
Deixam-se massacrar e massacram
Alguém vai ter de morrer alguém vai ter de vencer
Os olhos só vêem a severidade dos punhos
Que batem e batem e batem e batem
Os primeiros esguichos de sangue são saudados
Com grande excitação
Desenha-se a festa
Sobre o sofrimento do moribundo
Um último soco para o pôr ko
E a algazarra liberta-se
Jubila-se o vencedor Perdida criatura
A cara disforme mal o deixa festejar
Os que agora lhe levantam o braço
São os mesmos que amanhã vão aclamar
Aquele que o vai liquidar
Recolhem-se as apostas
Quem ganhou ganhou
O que alguém perdeu
A menos que todos percam
Nesta luta sem rosto
Que nos consome o presente

Primavera de Destroços

Zé dos Eclipses / Zé dos Eclipses

Caio nesses olhos apáticos
Caio nesse hipnótico abraço
Desta viagem entre flores plásticas
E coloridas manhãs de aço
Viveremos tudo revoltosos
Nesta Primavera de destroços
Sem dor, sem rancor, sem remorsos
Nesta Primavera de destroços

primavera de destroços

Ficha técnica

Gravado em Abril de 2000 por Nelson Carvalho, assistido por Nuno Couto, nos Estúdios Kasbah – Porto e em Outubro e Novembro de 2000 por Nelson Carvalho, assistido por Saul Patinho, nos Estúdios AreaMaster – Vigo e misturado em Dezembro de 2000 por Nelson Carvalho, assistido por Luís Caldeira e Artur David, nos Estúdios de Paço D’Arcos – Oeiras. Masterizado em Fevereiro de 2001 por Mandy Parnell no Exchange Studio – Londres. Produção de Miguel Pedro. Capa de Sónia Teixeira Pinto sobre fotografia de Daniel Blaufuks. Editado em Março de 2001. Edição original NorteSul.

  • Adolfo Luxúria Canibal – voz, sintetizador
  • Miguel Pedro – bateria, programações, sintetizador, samplers, guitarra, saxofone, vibrafone, baixo
  • António Rafael – guitarra, órgão, piano, vibrafone, baixo
  • Vasco Vaz – guitarra
  • Sapo – guitarra
  • Marta Abreu – baixo
  • José Pedro Moura – baixo, programações
  • Alberto Jorge – contrabaixo
  • Radjid – saxofone
  • Filk – trompete
  • Patrícia Antunes – voz
  • Patrícia Silveira – voz

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